2. Fortalecendo a governança multinível e o uso de instrumentos econômicos na bacia hidrográfica do rio Piancó Piranhas-Açu

A bacia hidrográfica interestadual do rio Piancó-Piranhas-Açu (PPA) cobre uma área de 46.683 km2 em um território semiárido da região Nordeste do Brasil (Figura 2.1). A bacia do PPA abriga 1,4 milhão de pessoas em 43.000 km2, em parte dos estados da Paraíba (60% da bacia) e do Rio Grande do Norte (40%) (IBGE, 2011[1]).

Devido a suas características socioeconômicas e hidrológicas, essa bacia é muito frágil para garantir o abastecimento de água atual e futuro. A hidroclimatologia da bacia é caracterizada por uma estação chuvosa que vai de janeiro a junho (a taxa pluviométrica anual varia entre 440 e 1.050 mm) e pela ausência de chuvas no restante do ano, combinada a uma seca plurianual, que ocorre periodicamente. De 2012 a 2020, a bacia viveu um de seus piores períodos de severa seca plurianual (de Sousa Freitas, 2021[3]). A maioria dos rios é intermitente. Assim, quase todo o abastecimento de água advém de diversos reservatórios que totalizam uma capacidade de armazenamento de 5.352 hm³. Alguns destes reservatórios operam para manter a vazão dos rios e servem como fonte de água para irrigantes, abastecimento público e outros fins.

Existem três reservatórios principais na bacia dos rios PPA, a saber o Curema-Mãe d'Agua (CMA, 1,160  hm3), o Armando Ribeiro Gonçalves (ARG, 2,400 hm3) e o Engenheiro Ávidos (EA, 400 hm3), correspondendo a 70% da capacidade de armazenamento de água superficial da bacia (5.659 hm3) (Figura 2.2). O CMA fornece água ao distrito de irrigação de Várzea de Souza (2.610 hectares de áreas irrigadas, além de abastecer duas cidades que totalizam 65.000 habitantes) e regulariza a vazão em uma porção do rio a jusante de 165 km, que serve como fonte de água a 465.000 habitantes e a mais de 4.000 hectares de área irrigada em 1.250 fazendas. O ARG é a fonte de água direta para extensos sistemas de tubulação, que fornecem água a muitas cidades, totalizando 400.000 habitantes, dentro e fora da bacia. Além disso, regulariza a vazão em uma área de 70 km a jusante, fornecendo água ao Distrito de Irrigação do Baixo Açu (2.400 hectares da área irrigada) e 3.766 hectares das fazendas irrigadas captam água do rio, e diversas fazendas de aqüicultura (principalmente produtoras de camarões), que totalizam 630 hectares em área de tanques para piscicultura. Em 2012, havia 54,4 mil hectares de terra irrigada, correspondendo a 1,3% da área de drenagem da bacia hidrográfica. As principais áreas de agricultura temporárias produzem soja e milho; enquanto as áreas de agricultura permanentes, banana e coco (ANA, 2016[2]).

Apesar da existência dos reservatórios, 60% (31 de 52) das unidades hidrológicas de planejamento1 na Bacia Hidrográfica do PPA apresentam desequilíbrio entre a oferta e a demanda (ANA, 2016[2]). Os recursos hídricos dos aquíferos da bacia são limitados (uma recarga anual de 458 hm3, equivalente a 8% da água armazenada nos reservatórios) e pouco utilizados (93 hm3 ou 20% da recarga anual). A irrigação corresponde a dois terços da demanda hídrica; a aquicultura, a 22%; o abastecimento público, a 7%; indústria e pecuária dividem os 4% restantes (ANA, 2016[2]). Há falta de investimentos em segurança hídrica (por exemplo: represas, reservatórios, coleta e tratamento) devido à capacidade limitada de investimento na bacia. Consequentemente, são necessárias medidas focadas na melhoria da resiliência da bacia, na resolução de questões de abastecimento e poluição e na concorrência entre os consumidores.

A agricultura irrigada é uma das principais atividades econômicas e tem sido chave no desenvolvimento regional desde a década de 1970. A área irrigada é de aproximadamente 81.000 hectares (IBGE, 2006[4]). Os irrigantes são os principais consumidores de água (65,7%), seguidos da aquicultura (23,6%), do consumo humano (7,6%), da indústria (1,6%) e da pecuária (1,5%) (Figura 2.3).

A poluição da água é um desafio significativo para a Bacia Hidrográfica do Rio Piancó-Piranhas-Açu devido ao tratamento insuficiente de esgoto e escoamento de fertilizantes (ANA, 2014[5]; ANA, 2016[7]; IBGE, 2006[4]; IBGE, 2011[1]). Aproximadamente, 96% da população urbana têm acesso à água potável no Estado da Paraíba; e 92%, no Estado do Rio Grande do Norte. No entanto, as taxas de coleta de esgoto são muito menores no Estado da Paraíba (2,46%) e no Estado do Rio Grande do Norte (13,95%)(ANA, 2014[5])(CBH PPA, n.d.[6]). A principal causa da poluição da água nessa área é a falta de tratamento adequado de águas residuais, que é de responsabilidade dos municípios. Os municípios enfrentam limitações (humanas, técnicas e financeiras) e, apesar de seu papel importante na gestão do saneamento, incluindo licenciamento ambiental e gestão de resíduos sólidos, eles raramente participam de reuniões dos Comitês de Bacia Hidrográfica. O fraco engajamento dos municípios na gestão dos recursos hídricos, que é comum no Brasil, prejudica qualquer visão estratégica para a Bacia. Além disso, a cultura de bacia permite o uso dos rios para despejo de efluentes líquidos e sólidos. Há programas, em nível federal, para apoiar os municípios no setor de saneamento, que é de sua responsabilidade.

A transposição do rio São Francisco, conhecida como Projeto de Integração do rio São Francisco (PISF), reduzirá a incerteza sobre a disponibilidade de água no PPA. Em 2007, o Brasil lançou o PISF e começou a construir sua infraestrutura para impulsionar o desenvolvimento econômico no nordeste do país, incluindo a bacia do PPA. O PISF é a obra de infraestrutura hídrica brasileira mais cara atualmente, com o valor estimado podendo alcançar R$12 bilhões (USD 5,8 bilhões) (da Silva Santos, 2021[8]). Programado originalmente para ser concluído em 2011, o projeto teve diversos atrasos e aumentos de custos. Atualmente, em fase final de execução, o projeto tem como objetivo desviar 1,4% do maior rio localizado exclusivamente no Brasil para as zonas semiáridas do nordeste, que abrigam 29% da população brasileira, mas possuem somente 3,3% dos recursos hídricos do país. Visa também a ajudar a rede de infraestrutura hídrica do Nordeste a operar de maneira mais integrada (por isso, o nome do projeto utiliza o termo “integração” e não “transposição”).

O rio São Francisco deverá fornecer água a algumas das áreas mais secas da região semiárida no Nordeste. Seis bacias hidrográficas se beneficiarão do projeto: Jaguaribe (Ceará), Piranhas-Açu e Apodi (Rio Grande do Norte), Paraíba, Moxotó e Brígida (Pernambuco). De acordo com o Ministério do Desenvolvimento Regional, o PISF suprirá a demanda hídrica dos municípios da região semiárida do Agreste Pernambucano e da região metropolitana de Fortaleza e solucionará os problemas causados pela escassez hídrica e por secas severas.

O PISF consiste em dois sistemas independentes de canais, tubulações e aquedutos (o eixo norte e eixo leste) que se estendem por aproximadamente 720 km (Figura 2.4). O eixo norte transfere as águas do rio São Francisco às bacias dos rios Jaguaribe (Ceará), Piranhas-Açu (Rio Grande do Norte) e Apodi-Mossoró (Rio Grande do Norte). O eixo leste conecta-se à bacia do rio Paraíba (Paraíba) e a algumas bacias de Pernambuco (através do Ramal do Agreste, o maior projeto de Infraestrutura hídrica de Pernambuco). O eixo leste foi o primeiro a entrar em operação, em 2017, e atualmente fornece água a cinco reservatórios na bacia do rio Paraíba (de Lucena Barbosa et al., 2021[9]).

O projeto também aborda importantes questões, como a poluição e a contaminação da água doce, para os quais a cobrança pelo uso de recursos hídricos pode contribuir. O projeto está sendo executado pelo Ministério do Desenvolvimento Regional com um orçamento de US$3 bilhões. A receita proveniente da cobrança pelo serviço de adução de água bruta pode financiar a sua operação e sua manutenção. Entretanto, com o progresso de sua implementação, o tratamento de questões de governança dos recursos hídricos, no âmbito da bacia hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu, torna-se ainda mais urgente, na medida em que o PISF trará mudanças substanciais para a gestão hídrica. Além disso, será necessário aprimoramento institucional das agências de governo, dos comitês de bacia e das instituições operacionais responsáveis pelo monitoramento hidrológico, controle do uso da água e operações dos reservatórios para lidar com essa nova realidade.

O PISF está em funcionamento e começa a evidenciar questões relacionadas a operação e manutenção (O&M) das principais infraestruturas hídricas. O governo federal foi responsável pelo financiamento e pela entrega da fase de construção, pelo estabelecimento do sistema de gestão e pela definição do operador em nível federal. Os estados são responsáveis pela operação, gestão e uso da água. A ideia era de que os estados pudessem cobrar dos beneficiários, de modo a financiar os custos de operação. Por meio de dispositivo contratual, as agências reguladoras dos estados (AESA e IGARN, que são os operadores estaduais), na Paraíba e no Rio Grande do Norte, deveriam cobrar dos usuários pelo serviço de adução de água bruta e pagar ao operador federal do PISF (Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e Parnaíba - CODEVASF) pela água recebida.. Além disso, os custos com energia são representativos na despesa operacional total, sendo assim, é preciso buscar eficiências operacionais e alternativas para redução desses custos. Para os demais reservatórios federais, na bacia, a operação é realizada pelo DNOCS (Departamento Nacional de Obras Contra a Seca) que é responsável por sua operação e manutenção.

A execução bem sucedida do PISF exige um arranjo institucional que permita a coordenação das funções federais e estaduais, a gestão eficaz dos recursos transferidos e um sistema eficiente e seguro de financiamento. A operação comercial completa ainda não começou, portanto, a resolução das questões pendentes é urgente.

Na esteira dos princípios de boas práticas (Quadro 2.1), deve considerar-se o seguinte:

  • Formalização dos arranjos institucionais para a tomada de decisão, para a regulação e a gestão do sistema PISF, de modo que as funções e as responsabilidades estejam claras, e mudanças na demanda e na disponibilidade hídrica sejam geridas de maneira sustentável. O projeto e sua operação exigem a coordenação, em todos os níveis de governo com a participação dos beneficiários e de outras partes interessadas. O Société du Canal de Provence (SCP), na França, traz exemplo inspirador de um arranjo de governança possível para o PISF. O SCP é uma sociedade de economia mista, criada em 1957, como uma Companhia de Desenvolvimento Regional, que se beneficia de uma estrutura estável de acionistas, com mais de 80% das ações sendo de propriedade das autoridades locais. Em 1963, o SCP assinou um contrato de concessão de 75 anos para construção e operação do Canal da Provença. Dentro da estrutura de concessão concedida pela Région Sud Provence-Alpes-Côte d’Azur, a tarefa preliminar do SCP era controlar e garantir o abastecimento seguro de água para a Provença. Para tanto, projetaram uma moderna rede que garantisse acesso à água para todos os consumidores e usos, e, atualmente, a SCP continua desenvolvendo e gerindo esta rede. O sistema do Canal de Provence foi concebido para permitir sua adaptação à demanda, mantendo, assim, a adução da água ao mínimo.

  • Esclarecimento das metas e dos objetivos do PISF, e estabelecimento de programa de comunicação e engajamento para os beneficiários, de modo que a base para a operação e financiamento esteja clara para todos. O objetivo do projeto é o desenvolvimento regional. Então, deve visar a aumentar o bem-estar, disponibilizando água para apoiar o crescimento econômico. O PISF ajudou a unir vários estados e os aproximou da ANA. Há discussões rotineiras sobre os desafios, mas até o momento, não foram encontradas soluções para resolvê-los, o que sugere que o formato atual para o diálogo necessita ser repensado, talvez por meio de um laboratório de idéias (think tank). As metas do PISF, especificamente, precisam ser acordadas em relação aos beneficiários prioritários e aos objetivos estratégicos para a região. Em última análise, o diálogo deverá contribuir para a sustentabilidade financeira do projeto, partilhando custos e benefícios entre os beneficiários. A experiência internacional tem demostrado que a operação de projetos de transposição precisa ser considerada dinamicamente, para que possa responder a mudanças na demanda, mudanças climáticas, eventos climáticos extremos e impactos ambientais. Estas questões tornam imperativo que os objetivos do PISF sejam revistos e regras operacionais flexíveis sejam estabelecidas de modo a não travar o sistema com processos rígidos e insustentáveis. Na Colômbia, campanhas para mudança comportamental no Valle de Cauca têm contribuído para duplicar o número de usuários a jusante por meio de medidas de conservação. Quatorze equipes de funcionários da autoridade ambiental local treinaram líderes comunitários em gestão de recursos naturais, marketing social e planejamento de campanha, e, ao mesmo tempo, capacitaram-nos a fim de criar confiança em diferentes partes interessadas. Como resultado, aproximadamente 1.700 hectares de floresta agora são protegidos voluntariamente por fazendeiros da região. O Valle de Cauca ultrapassou sua meta anual de conservação, as taxas de desmatamento caíram para abaixo da média nacional, e suas bacias apresentam tendências positivas nos índices de qualidade da floresta e da água.

  • Avaliação do PISF quanto ao risco, resiliência e incertezas usando cenários para diferentes níveis de demanda e disponibilidade hídrica, diante das mudanças climáticas e em prazos compatíveis com a vida útil esperada da infraestrutura hídrica (ou seja, pelo menos 50 anos). Considerar como uma carteira mais integrada de opções, tal como maior utilização da gestão da demanda, redução de vazamentos, reuso de efluentes, dessalinização ou águas subterrâneas, poderia ajudar na gestão de riscos e incertezas. Como no caso do Canal da Provença e sua infraestrutura, o foco é no lado da oferta, com investimentos planejados há décadas (se não séculos), e não na demanda (eficiência hídrica, redução do uso da água). Entretanto, dadas as soluções técnicas disponíveis atualmente e a conscientização crescente, incluindo no setor agrícola, deve-se ponderar sobre um deslocamento da gestão do lado da oferta para o da demanda.

  • Início de um programa de engajamento e conscientização para que as boas práticas sobre regras de acesso e cobrança estejam estabelecidas, quando a operação começar de fato. O PISF não oferecerá água gratuita ilimitadamente. As discussões sobre como deveria ser a estrutura de tarifa perfeita arriscam impedir a implementação de alguma forma de cobrança. Existe a percepção de que as comunidades que desfrutam desse benefício acreditam que a água está disponível para elas a custo zero, o que não é verdade.

  • Estabelecimento de regras de acesso ao recurso, apoiadas por um sistema de licenças e monitoramento de conformidade, a fim de encorajar os usuários a operar de forma eficiente e minimizar o desperdício. Essas questões são interligadas e é essencial que haja diálogo com todas as partes interessadas a fim de alcançar uma definição sobre arranjos de governança e financiamento. Se essas questões não forem resolvidas, o resultado será a falta de receita para operação e manutenção (O&M), deterioração das instalações e falha na esperada entrega dos benefícios econômicos e do bem-estar desse grande projeto.

  • Utilização das cobranças pelo uso de recursos hídricos para demonstrar que a água tem valor e que há custos para a sua disponibilização e manutenção das instalações que proporcionam sua distribuição. Existem custos fixos em todos os grandes projetos. Há também custos variáveis em razão de flutuações na demanda que devem ser financiadas por aqueles que se beneficiam de uma maior segurança no fornecimento ou de uma nova fonte. Os beneficiários são os consumidores de água dos municípios, que devem pagar uma tarifa realista pelo serviço de abastecimento de água, o que está sujeito a salvaguardas para aqueles com menor poder aquisitivo. O PISF precisará operar em capacidade máxima para alcançar todas as áreas com potencial de irrigação. Acredita-se que os usuários aparecerão quando a água for disponibilizada.

  • Desenvolvimento de programa para o monitoramento técnico do desempenho do PISF e outros grandes projetos para revisar as regras de controle, caso necessário e para informar cronogramas e exigências orçamentárias para a manutenção rotineira e preventiva, de modo que as perdas sejam minimizadas e todas as partes do sistema de transposição operem como projetadas. Deve-se monitorar continuamente o sistema quanto aos impactos ambientais, hidrológicos, socioeconômicos e regionais para que as regras de operação possam ser modificadas para reduzir impactos adversos e imprevistos. Como em todos os grandes projetos, é essencial que haja monitoramento contínuo do desempenho para que as regras de controle possam ser revistas e ajustadas, quando necessário, com vistas a assegurar que estejam funcionando como planejado e de modo que a manutenção rotineira e preventiva possa ser programada eficientemente. O projeto foi elaborado com a expectativa de que, ao aumentar a segurança hídrica, a demanda se materializasse para aproveitar os recursos hídricos adicionais. Uma vazão média de até 26,4m³/s é garantida para abastecimento humano e animal. Se a água não for toda consumida, o excedente pode ser alocado para outras finalidades. A depender do nível na barragem de Sobradinho, até 127 mm³/s podem estar disponíveis. A distribuição das vazões entre os diferentes tipos de usuários e estados e as tarifas a serem cobradas estão especificadas no Plano de Gestão Anual, o PGA, aprovado pela ANA. Sem controles e regulamentações rígidos de alocação formal nem fiscalização para minimizar o uso ilegal, existe o risco de expansão descontrolada de demanda, que impactará o uso contratado e o prioritário. Entretanto, o incremento no uso acarreta potencial aumento de receita para a cobertura dos custos, embora isso seja contrabalançado pelo aumento dos custos operacionais (primariamente de energia). O exemplo da transposição de Tejo-Segura, na Espanha, demonstra que os impactos ambientais, somente após muito tempo, podem se manifestar. Necessita-se, portanto, de um compromisso de monitoramento de longo prazo para a compreensão dos efeitos em vazões, qualidade da água e ecossistemas.

Esta seção descreve oportunidades e recomendações baseadas em estruturas normativas, estudos e relatórios da OCDE sobre governança e gestão de recursos hídricos, bem como sobre as melhores práticas internacionais.

A bacia do PPA cruza os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte. Desde 2009, um único Comitê de Bacia Hidrográfica (CBH) governa a bacia do PPA, como acordado pelo governo federal e pelos dois estados. Os estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte possuem Conselhos Estaduais de Recursos Hídricos (CERH), Secretarias estaduais e Agências Reguladoras - a Agência Executiva de Gestão de Águas do Estado da Paraíba (AESA) e o Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte (IGARN). Mapear quem faz o que é o primeiro passo para representar a atribuição de papéis e responsabilidades em diferentes níveis de governo e entre funções para a gestão de recursos hídricos dentro da bacia (Figura 2.5).

Funções e responsabilidades entre os níveis do governo são alocadas da seguinte forma:

  • Nível federal

    • Conselho Nacional dos Recursos Hídricos (CNRH) tem poderes deliberativos e é responsável pela aprovação do Plano Nacional de Recursos Hídricos, e pela definição de diretrizes orientadoras gerais para os instrumentos de gestão hídrica, incluindo outorgas de uso e cobranças pelo uso de recursos hídricos.

    • A Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA) é responsável pelas outorgas de direito de uso de recursos hídricos no âmbito dos rios federais. É também encarregada do monitoramento hidrológico e dos reservatórios, monitoramento do uso da água, controle e fiscalização e projetos de gestão hídrica em nível federal.

    • Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) se destaca como o fornecedor principal da infraestrutura hídrica, responsável pela formulação e pela implementação das políticas públicas. Financia, também, novos sistemas hídricos e barragens.

    • O Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) é uma instituição do Governo Federal que faz a gestão de 321 reservatórios no nordeste do Brasil. Alguns desses reservatórios estão situados na Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu e fornecem 70% da água superficial da bacia.

    • A Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (CODEVASF) é a atual operadora federal do PISF.

  • Nível estadual

    • A Secretaria Estadual do Meio Ambiente, Recursos Hídricos e Ciência e Tecnologia da Paraíba (SEMARH/PB) e a do Rio Grande do Norte (SEMARH/RN) são responsáveis pela formulação e pela execução da política de recursos hídricos e pelo financiamento de grandes projetos de infraestrutura hídrica em nível estadual. Essas secretarias controlam também os reservatórios construídos pelo estado.

    • A Agência Executiva de Gestão das Águas do Estado da Paraíba (AESA) e o Instituto de Gestão das Águas do Estado do Rio Grande do Norte (IGARN) concedem outorga para uso de recurso hídrico em águas estaduais. São também responsáveis pelos monitoramentos hidrológicos dos reservatórios e do uso da água, pelo controle e pela fiscalização, e pelos projetos de gestão de recursos hídricos em nível estadual. A AESA opera, também, sistemas hídricos estatais.

    • O Conselho Estadual de Recursos Hídricos da Paraíba (CERH/PB) e o do Rio Grande do Norte (CERH/RN) têm poderes deliberativos e são responsáveis pela aprovação dos Planos Estaduais de Recursos Hídricos e pela definição de diretrizes gerais de instrumentos de gestão de recursos hídricos, incluindo outorga de uso da água e cobranças pelo uso de recurso hídrico, em nível estadual.

  • Nível de bacia

    • O Comitê de Bacia Hidrográfica do Piancó-Piranhas-Açu (CBH-PPA) foi criado em 2006 e iniciou suas operações em 2009. O CBH-PPA é um órgão colegiado que reúne 40 representantes dos setores do uso da água, agências governamentais e sociedade civil. O Comitê é responsável por promover discussões a respeito de todas as questões hídricas, aprovar o Plano de Gestão de Bacia, estabelecer prioridades de uso da água, aprovar mecanismos de cobrança pelo uso de recursos hídricos e cronograma de implementação.

    • Desde o fim de 2016, um Escritório Técnico contratado pela ANA foi fundado na bacia hidrográfica do PPA como parte da implementação do plano de bacia. Esse Escritório tem desenvolvido diversas funções operacionais para apoiar a gestão de recursos hídricos e as agências governamentais.

O Plano de Recursos Hídricos da Bacia Hidrográfica do rio Piancó-Piranhas-Açu é uma referência para o Comitê de Bacia Hidrográfica e para as agências de gestão de recursos hídricos de rios federais e estaduais (veja a seção seguinte). Aprovado em 2016, o plano tem um orçamento de R$ 150 milhões para os primeiros cinco anos, e prevê três tipos de ações focadas na melhoria da segurança hídrica e da qualidade da água, devido ao baixo nível de infraestrutura de saneamento. As ações serão implementadas pelo Comitê de Bacia Hidrográfica, ANA, AESA e IGARN. O plano de recursos hídricos da bacia hidrográfica do rio PPA foi estendido até 2021 e sua revisão está em andamento com vigência de 5 anos a partir de 2022. As principais limitações que dificultam a implementação do plano de recursos hídricos da bacia hidrográfica do PPA são: (1) o orçamento da ANA é a única fonte de financiamento para o CBH na ausência de um mecanismo de financiamento baseado na cobrança aos usuários de água da bacia, e (2) as medidas da bacia hidrográfica do PPA devem estar alinhadas com as políticas de recursos hídricos nos níveis estadual e municipal.

Nesse contexto, as funções e as responsabilidades necessitam ser definidas e alocadas claramente commecanismos sólidos de coordenação. A governança multinível exige forte articulação entre atores e objetivos. Necessita, também, de mecanismos robustos de participação de modo a assegurar que todas as entidades estejam envolvidas ativamente. A fraca participação dos municípios na gestão de recursos hídricos advém, inicialmente, da particularidade do "duplo domínio”. A Constituição Brasileira divide a titularidade e as competências sobre recursos hídricos entre a União (para os rios que cruzam limites estaduais e transfronteiriços) e os estados (todo os demais rios), o que dificulta uma visão estratégica para a bacia do PPA.

Atualmente, está em discussão na bacia do PPA a alternativa de manter as agências estaduais existentes ou de criar uma nova instituição para a gestão da água (isto é, uma Agência de Águas do PPA). Até certo ponto, o problema não é sobre a estrutura institucional, mas, sim, sobre o cumprimento eficiente das funções de gestão da água (quantidade, qualidade, defesa contra inundações, gestão de esgotos e tratamento de águas residuais e abastecimento de água potável). Assim, é importante assegurar que o projeto de governança escolhido disponha das funções e dos poderes necessários para cumprir sua missão na escala apropriada. Tais como:

  • A utilização das estruturas existentes poderia ser mais eficiente. Na França, por exemplo, as Agências de Águas, criadas em 1964, inicialmente, enfrentaram problemas para contratar pessoal competente e adequado, o que afetou sua capacidade de cumprir suas missões. Dificuldades similares estão presentes na bacia hidrográfica do PPA porque há falta de pessoal na gestão estadual de recursos hídricos e nas agências ambientais, o que prejudica a capacidade operacional. Criar uma nova instituição poderia agravar ainda mais essa situação. Além disso, as instituições existentes encarregadas da gestão de recursos hídricos nos estados da Paraíba e do Rio Grande do Norte apresentam muitos níveis de responsabilização, o que é considerado positivo.

  • Encontrar a menor escala apropriada para cumprir eficientemente as funções da gestão de recursos hídricos pode ser um princípio a ser seguido. Embora cada país tenha suas próprias particularidades, seguir o princípio da subsidiariedade pode ser um ponto de referência.

  • Avaliar se as instituições em nível de bacia estão cumprindo seu mandato de identificar lacunas (gaps) e planejar medidas para superá-las. Um exemplo é a ferramenta de autoavaliação usada na Tanzânia para medir o desempenho das nove diretorias de bacias hidrográficas que executam a Gestão Integrada de Recursos Hídricos em nível de bacia. As diretorias de bacias são unidades administrativas descentralizadas, que, juntamente com os comitês de bacia (catchment committees) e as associações de usuários dos recursos hídricos, compõem o arcabouço institucional para a gestão dos recursos hídricos. A Estrutura de Avaliação de Desempenho é uma ferramenta de autoavaliação que apoia as diretorias de bacia para avaliar, regularmente, seu desempenho de acordo com seu mandato institucional. A ferramenta foi desenvolvida pelo Ministério de Água e Irrigação, com o apoio da Sociedade Alemã de Cooperação Internacional (Deutsche Gesellschaft für Internationale Zusammenarbeit, GIZ). O ministério fornece apoio às diretorias enquanto administra a Estrutura de Avaliação de Desempenho, o que constitui também excelente oportunidade para o ministério mapear a robustez e as debilidades de cada diretoria.(OECD, 2018[13])

Fortalecer o engajamento das partes interessadas em nível de bacia é vital para promover contribuições informadas e orientadas a resultados com vistas à formulação e à implementação de políticas de recursos hídricos. As comunicações formais e informais são importantes e devem ocorrer de modo regular e permanente. De forma tentativa, a OCDE (2015[14]) descreve algumas das vantagens e dos inconvenientes resultantes dos mecanismos formais e informais de engajamento (Quadro 2.2).

  • Os mecanismos formais, tais como associações de usuários de recursos hídricos e organizações de bacias hidrográficas, são frequentemente baseados no princípio da democracia representativa, o que lhes confere legitimidade. Entretanto, podem ser percebidos como de visão única quando focam apenas nos objetivos de um só grupo de interessados. As organizações de bacias hidrográficas podem ser capturadas quando as discussões e as decisões são monopolizadas pelos interesses de determinados grupos. Podem também gerar tensões do tipo agente-principal (principal-agent tensions), nas quais a pessoa que se senta à mesa manifesta seus próprios interesses, ao invés de defender o grupo que representa. Esta deve ser uma preocupação ao se selecionar partes interessadas para participar de diretorias consultivas, grupos de trabalhos ou assembleias.

  • A natureza relativamente informal das reuniões e das oficinas (workshops) pode fomentar a deliberação e criar sentimento de união. Esses eventos proporcionam um clima mais aberto, o que faz com que os participantes se mostrem mais dispostos a discutir problemas e maximizem diálogos que não surgiriam por meio de outros mecanismos. Por exemplo, as reuniões e as oficinas são flexíveis em relação ao cronograma e à escala (das reuniões comunitárias às conferências internacionais) e podem ser aplicadas a uma gama de problemas (por exemplo, da discussão sobre um projeto de esgoto municipal ao debate sobre acordos de gestão de bacia transfronteiriça). Elas oferecem oportunidades para que qualquer um expresse suas preocupações e seus interesses, acesse e compartilhe informações e tenha melhor compreensão a respeito do tema. Entretanto, se as ferramentas utilizadas para envolver as partes interessadas não tiverem um nível mínimo de estrutura e mediação, os resultados podem se revelar difíceis de serem incorporados nas decisões. Faz-se mister, ainda, um acompanhamento para transformar as visões e as preocupações em contribuições para a tomada de decisão, para além do compartilhamento de informações.

A participação de comunidades desassistidas/desfavorecidas requer e está recebendo mais atenção. Entretanto, os profissionais da gestão de recursos hídricos precisam ampliar seu raio de ação, especialmente no que diz respeito ao conhecimento histórico e ecológico das comunidades nativas que são soberanas e detêm direitos, mas geralmente são pouco consultadas (Quadro 2.4).

Os métodos e as ferramentas de comunicação são cruciais para fortalecer a dinâmica de pactos pela gestão de recursos hídricos coletivamente acordados. No Arizona, as práticas de comunicação melhoraram muito nos últimos anos. Há alguns anos, as reuniões ocorridas na sede do Projeto do Arizona Central, no norte de Phoenix, começaram a ser transmitidas para que mais partes interessadas pudessem assistir e observar. A pandemia acelerou e melhorou essa tendência com a introdução de reuniões interativas e virtuais. A maioria das reuniões é realizada por órgãos públicos que têm de compartilhar agendas, anunciar reuniões, fornecer acesso aos materiais/recursos, etc. As lideranças têm se esforçado para viajar e conversar com as pessoas. Bons memorandos também se mostraram importantes para transmitir e compartilhar informações. É importante dispor de base de dados precisa para fornecer informações claras e harmonizadas. A base de dados é útil especialmente quando se trata de águas subterrâneas, porque a modelagem traz visibilidade para algumas evoluções que, de outra forma, seriam imperceptíveis. As partes interessadas podem ser céticas, daí a importância de ser transparente sobre os modelos utilizados.

No que diz respeito à conformidade do uso de recursos hídricos, a Declaração Anual de Uso de Recursos Hídricos (DAURH) é um instrumento auto-declaratório importante que exige que os grandes usuários brasileiros de recursos hídricos informem seu volume anual de adução. A DAURH é exigida nas bacias e nos sistemas onde há pressão sobre recursos hídricos e tem aprimorado o monitoramento dos seus usos em muitas bacias hidrográficas do Brasil. Na bacia do Piancó-Piranhas-Açu, as declarações exigidas dos usuários representam 75% da demanda hídrica atendida pelos seis reservatórios principais. Outras metodologias de monitoramento do uso da água foram implementadas, como sensoriamento remoto de áreas irrigadas, telemetria dos dados de uso da água e autodeclaração de uso da água usando aplicativos móveis (apps). Além disso, o escritório técnico contratado, em 2016, executou diversas atividades para apoiar a avaliação de conformidade do uso de recursos hídricos em águas federais e estaduais. Essas atividades incluíram a identificação e o registro de usuários de recursos hídricos, medição de vazão, monitoramento de operações do reservatório, identificação das obstruções nos rios e visitas técnicas às barragens. De 2017 a 2020, mais de duas mil visitas técnicas foram realizadas para verificar a situação do uso da água e a conformidade com as regras de uso. Além disso, imagens de satélites foram usadas para identificar e monitorar remotamente áreas agrícolas na região, bem como os usos irregulares, o que levou a ANA a coordenar a remoção de bombas de água e o fechamento de canais irregulares. A combinação de atividades de campo com as tecnologias remotas inteligentes melhorou a conformidade do uso da água e ajudou a controlar a demanda hídrica durante o período de seca severa que durou de 2013 a 2019. Entretanto, melhorias adicionais no monitoramento e na avaliação do uso da água na bacia são necessárias e estão em discussão. Tais melhorias incluem funções de gestão operacional do recurso hídrico para apoiar a implementação de regras de alocação da água, como monitoramento e controle hidrológico e da demanda hídrica, dragagem de rio, operações do reservatório, manutenção e segurança de barragens, eficiência do uso da água e controle de poluição. O Quadro 2.5 oferece exemplos internacionais.

O termo “regime de alocação de água” é utilizado para descrever o processo e as ferramentas envolvidos no compartilhamento de recursos hídricos entre os diferentes usuários de água. Isso inclui o estabelecimento de planos de recursos hídricos que definem a disponibilidade hídrica e a concessão de outorgas de uso de água a usuários individuais. Inclui também a alocação de recursos hídricos em longo prazo, bem como ajustes sazonais à quantidade de água disponível aos diferentes usuários, e a alocação das águas superficiais e subterrâneas. Existem diversas ferramentas para traduzir os princípios da alocação para uma gestão hídrica concreta. Isso inclui planos de gestão hídrica, licenças de uso da água, títulos coletivos e ferramentas de fiscalização e monitoramento.

A OCDE(2015[19]) demonstra que o Brasil alcançou progresso notável na reforma de seu setor hídrico desde a Lei das Águas de 1997. Entretanto, as pressões econômicas, climáticas e de urbanização podem aumentar as tensões entre usuários de recursos hídricos em algumas regiões e bacias, como, por exemplo, na bacia do rio Piancó-Piranhas-Açu (PPA). O relatório recomenda fortalecer a coordenação entre políticas hídricas federais e estaduais e estabelecer regimes mais robustos de alocação da água que possam lidar melhor com os riscos futuros de escassez hídrica (Quadro 2.6).

Todos os recursos hídricos do Brasil estão em domínio público (federal ou estadual). A Lei das Águas de 1997 estipula que o consumo humano e a dessedentação animal têm prioridade sobre os outros usos nos períodos de escassez hídrica. Conforme o decreto 3.692/2000, a ANA deve estabelecer vazões mínimas para os rios estaduais que alimentem rios federais.

Dependendo do equilíbrio entre abastecimento e demanda hídrica estimado para o ano seguinte, os reservatórios e os rios podem estar sujeitos a alocações negociadas de água para aquele ano (Alocação de Água - AA). Um acordo permanente de recursos hídricos (chamado marco regulatório - MR) foi criado para reservatórios e rios com um déficit hídrico crônico (sujeitos a várias AAs). O objetivo é estabelecer limites sobre o volume total de água disponível para alocação e determinar regras para compartilhar a água durante períodos de escassez. Ambos os instrumentos geralmente estabelecem:

  • uma cota para cada uso da água (abastecimento humano, irrigação, etc.)

  • restrições ao uso da água para preservar usos múltiplos na eventualidade de escassez hídrica

Os regimes de alocação de água na bacia hidrográfica do PPA foram estabelecidos por meio de acordos de uso da água (water agreements) em nível local. Em 2018 e 2019, após processo intenso de debate, os Marcos Regulatórios (MRs) foram discutidos e implementados nos principais sistemas de reservatórios da bacia hidrográfica. Em muitos casos, as regras de alocação de água evoluíram para definições conjuntas assinadas pela ANA e pelas agências dos governos estaduais, definindo as regras de uso de águas federais e estaduais, enfrentando, assim, as questões relacionadas à dupla dominialidade. Tais acordos de alocação de água geralmente estabelecem uma quota para cada uso da água, considerando a disponibilidade hídrica do sistema hidrológico. Há também regras de restrição de uso da água, associadas aos níveis dos reservatórios ou às vazões dos rios. Entretanto, é importante que se incentive o desenvolvimento institucional para implementar regras de alocação de água tanto em sistemas locais, quanto em grandes trechos de rio.

A implementação das AAs e dos MRs na bacia do PPA começou em 2015. Em 2021, sete (de onze) reservatórios situados na bacia estavam sob o MR e outros dois sujeitos a uma AA. Além das AAs e MRs, a conformidade com os níveis mínimos de vazão dos rios e de água nos reservatórios, estabelecidos pela Lei das Águas de 1997, pode provocar limitações adicionais ao uso do recurso hídrico.

O CBH conduz os processos de AA. As comissões "ad hoc" asseguram a implementação apropriada das AAs e emitem comunicados em relação ao estado dos recursos hídricos e riscos de escassez. Os MRs são passíveis de fiscalização por meio de resolução da ANA ou da agência de água estadual competente, ou de ambas. Eles resumem os conjuntos de regras definidas em consulta com governos locais e usuários da água (por exemplo: vazões de referência ao longo da bacia, como base para decisões de alocação). Onde quer que estejam em vigor, todas as outorgas de uso da água devem incluir as condições que exigem que o usuário da água cumpra as regras estabelecidas pelo MR.

A Tabela 2.2 resume as características-chave do regime de alocação de água no Brasil.

O Plano Nacional de Recursos Hídricos (PNRH), entretanto, não fornece clara orientação sobre como a alocação de água entre setores deve ser resolvida nas épocas de escassez hídrica. Para controlar o risco de escassez, a alocação da água na bacia do PPA é baseada principalmente nos acordos negociados entre usuários anualmente (AAs), que podem se transformar em marco regulatório (MR), caso persista o risco de escassez em um rio ou um reservatório.

Metodologias de precificação podem alocar água entre usuários a um custo-benefício melhor. Este é o caso de cobranças pelo uso de recursos hídricos dispostas na Lei das Águas de 1997, introduzidas, até certo ponto, no estado da Paraíba, contanto que reflitam o risco de escassez e que as taxas não sejam diferenciadas entre usuários. Sistemas de limites e comércio de emissões de gases de efeito estufa (cap-and-trade systems) teriam o melhor custo-benefício ao estabelecer (1) um teto à adução e (2) um preço para a outorga pelo uso da água, implicitamente taxando a adução de acordo com a demanda da água, melhorando, assim, a eficiência do uso do recurso hídrico. As cobranças pelo uso de recursos hídricos e os sistemas de outorgas (mercado de água) serão discutidas abaixo, bem como a combinação entre eles ou com a regulação direta.

A alocação de água constitui essencialmente meio de controlar o risco de escassez e de ajustar usos concorrentes. Ao estabelecer regimes de alocação de água, as vazões de referência devem levar em consideração as demandas não-consuntivas de água, incluindo as vazões ambientais (e-flows), que indicam o regime de vazão necessário para sustentar serviços ecossistêmicos em nível necessário (Quadro 2.7).

A vazão ambiental é um assunto muito técnico (com nível mínimo, nível máximo, nível de vazão ao longo do tempo). Grande parte da determinação das vazões ambientais foca na vazão mínima em relação à escassez de água com o objetivo de preservar os ecossistemas a jusante (Quadro 2.7). Diferentes metodologias podem ser utilizadas. Uma delas é baseada em dados históricos que são utilizados para analisar vazões mínimas históricas. Por meio da modelagem de dados históricos, a regulação de vazão mínima é determinada. Outro método utiliza-se de estudos biológicos para determinar as necessidades dos peixes e as exigências de vazões mínimas associadas. Esse método é executado com o apoio de acadêmicos e pesquisadores das universidades. Além disso, há importante trabalho hidrológico e de planejamento feito com fornecedores de eletricidade para adaptar as vazões.

Na Espanha, a visão das exigências ambientais mudou muito. No passado, a visão dominante era mais utilitária, com a finalidade de usar a água e o meio ambiente para criar riquezas. O foco começou a mudar na década de 1990, quando uma importante seca comprometeu o fornecimento urbano de água. Mais tarde, a Diretiva Quadro da Água ajudou a desenvolver e fortalecer o conceito de vazão ecológica dos rios. Existe, ainda, a necessidade de se aumentar essas vazões, mas é difícil fazer os usuários compreenderem a necessidade de manutenção de algumas condições ecológicas. Isto se tornará cada vez mais importante no futuro, especialmente para adaptar-se às mudanças climáticas, com o aumento da temperatura da água se transformando em um problema. A importância de vazões ambientais é amplamente reconhecida e a falha em proporcionar vazões ambientais adequadas pode levar a múltiplos impactos negativos, frequentemente, inesperados (Quadro 2.8).

Nos EUA, necessidades ambientais e demandas hídricas são decentralizadas e variam de acordo com cada jurisdição. Lidar com a vazão ambiental é chave para manter os ecossistemas aquáticos em boas condições, uma vez que eles aumentam a sustentabilidade e melhoram a qualidade da água. Não obstante, as vazões e as necessidades ambientais são de difícil valoração.

A prioridade dada por lei ao consumo humano e animal em detrimento de outros usos, em época de escassez hídrica, pode levar (o que já ocorreu) a privar os produtores rurais de seus direitos referentes à água, com consequências econômicas decorrentes da ausência de um mecanismo financeiro de compensação. Para compensar os agricultores que se deparam com essa situação ou para evitar que essa situação ocorra, três opções poderiam ser consideradas: (1) um regime de seguro ou resseguro garantido pelo governo federal poderia ser combinado com o atual esquema de cotas AA/MR, (2) a generalização das cobranças pelo uso de recursos hídricos poderia substituir a regulação direta (ou seja, o regime AA/RM) por um sistema de subsídios cruzados em favor dos agricultores, conforme acima descrito, ou (3) leilão de cotas AA/MR poderia ser permitido, mas garantindo os direitos originários dos produtores rurais.

No Brasil, os grandes bancos públicos (Banco do Brasil, Banco da Amazônia) cobrem os custos do seguro agrícola (até certo ponto) para fazendeiros de baixa renda. Não há nenhum seguro para irrigação. Há certamente melhor custo-benefício na cobertura do risco de não-produção do que cobrir o risco de falta de água para irrigação. Este último poderia ser considerado um subsídio a insumos agrícolas e ficaria sob a disciplina de subsídio da OMC.

O seguro multirrisco (pragas, secas, danos causados pela vida selvagem às culturas, etc.) aumentaria a base para os prêmios de seguro e reduziria a taxa. O mesmo raciocínio aplica-se ao seguro em nível de bacia para consorciar o risco entre todos os fazendeiros daquela bacia. Os contratos de seguro plurianuais permitiriam uma recuperação melhor dos prêmios (pelo spread de risco). Definir um limite de risco de seca (“um nível aceitável” de risco de seca) melhoraria a transparência na atribuição de prêmios de seguro.

Para evitar o risco moral, em vez de subsidiar o prêmio do seguro de alguns fazendeiros (de renda mais baixa), haveria melhor custo-benefício em aplicar um valor mínimo de prêmio a todos os fazendeiros, introduzir um prêmio adicional para aqueles de maior renda e redistribuir essa renda para ajudar os mais pobres a pagar o prêmio mínimo.

Os instrumentos de precificação da água poderiam ser úteis para complementar o seguro de colheita. Em caso de seca, os mercados de água compensariam (em parte) a perda da produção agrícola com um valor mais elevado de direitos de uso de recurso hídrico, especialmente direitos de uso da água de longo prazo (ajuste de mercado). A generalização das cobranças pelo uso de recursos hídricos de acordo com o risco de escassez exigiria a definição de um limite aceitável de risco de escassez, melhorando assim a implementação do seguro agrícola. O Quadro 2.9 apresenta uma visão geral do funcionamento dos instrumentos de gestão de riscos agrícolas nos países da OCDE e nas economias emergentes.

As experiências internacionais demonstram que a informação e o engajamento das partes interessadas são fundamentais para resolver conflitos na ausência de mecanismos de compensação. Na Califórnia, o estado criou um sistema comum de contabilidade hídrica para que todas as partes interessadas tenham acesso e usem dados e informações semelhantes. A existência de dados e de uma base comum para o entendimento técnico é crucial para acordos ao longo do tempo. Os governos estaduais ou locais podem então organizar discussões sobre a alocação de água usando as informações do sistema de contabilidade hídrica. Essa é uma prática comum na Califórnia com relação à questão dos direitos de uso de recursos hídricos. As discussões ocorrem antes da seca, já que, durante a seca, a pressão da emergência aumenta a sensibilidade política. A maioria das decisões sobre a água é tomada localmente, onde a demanda hídrica está situada e onde ocorrem o uso da terra e outros fatores de demanda por água. Além disso, essa prática promove responsabilidades e deveres muito mais diretos aos usuários de recursos hídricos. Na Espanha, o abastecimento urbano de água é considerado um uso prioritário da água. Assim, normalmente não há compensação para outros usuários quando o uso da água é restringido ou cortado em caso de seca. No entanto, durante a seca de 2005-2006, uma oferta pública foi realizada para vender direitos de uso de águas subterrâneas com intuito de manter a vazão ecológica. Isso reduziu, com sucesso, o bombeamento. Além disso, na costa mediterrânea espanhola, tribunais tradicionais são responsáveis por resolver os conflitos pelo uso da água entre os irrigadores (Quadro 2.10).

Três grandes desafios econômicos estão presentes na bacia do PPA. O primeiro é o financiamento da operação e manutenção (O&M) de infraestrutura de armazenamento e transporte de água bruta, fundamental para essa área semiárida. Sua importância cresceu uma vez que a transposição do rio São Francisco aumentou as esperanças de desenvolvimento socioeconômico na bacia. A bacia do PPA é carente de financiamento para O&M dos pequenos reservatórios da bacia. Aparentemente, não há provisão para cobrir O&M dessas infraestruturas na precificação dos serviços de água e saneamento ou água de irrigação. O segundo desafio é a implementação do princípio de “água paga a água”, que consiste em alocar as receitas da cobrança pelo uso de recursos hídricos à Gestão Integrada de Recursos Hídricos (GIRH, no CBH). O terceiro desafio é a alocação de água e a gestão da demanda para promover o uso eficiente da água e administrar o risco de escassez sob o ângulo do custo-benefício.

Os instrumentos de precificação (cobranças pelo uso de recursos hídricos, mercados de água) são relevantes para enfrentar os três desafios. Eles criam incentivos para reduzir a demanda hídrica e alocar a água de forma custo-efetiva. Eles arrecadam recursos para financiar a infraestrutura e a GIRH. Uma estrutura conceitual foi proposta para criar instrumentos de precificação e financiamento na bacia do PPA (Figura 2.6). A cobrança pelo serviço de adução de água bruta (user charge) e a cobrança pelo uso dos recursos hídricos (abstraction charge), conforme estabelecidas na Lei das Águas de 1997, têm objetivos diferentes. A cobrança pelo serviço de adução de água bruta visa a recuperar os custos dos serviços de oferta de água (pagamento com contrapartida). A cobrança pelo uso de recursos hídricos visa a gerir os recursos hídricos e deve contribuir para o orçamento geral (pagamento sem contrapartida). Embora limitando a flexibilidade no uso de fundos públicos, mas melhorando a aceitabilidade pública/política da cobrança pelo uso de recursos hídricos, isso representa a aplicação do princípio "a água paga a água". Esse princípio também pode ser aplicado no caso de um sistema cap-and-trade de leilão de direitos de uso da água, alocando os proventos do leilão à GIRH.

Os grandes usuários de água bruta devem financiar a O&M da infraestrutura de armazenamento e transporte (reservatórios e Projeto de Integração do São Francisco - PISF), por meio da cobrança pelo serviço de adução de água bruta (user charges), conforme a própria definição da cobrança (pagamento em contrapartida pela prestação de serviços) (Figura 2.6). O valor pode ser repassado ao consumidor final na conta de água (ou seja, a cobrança pelo uso da água). Como regra geral, tal como acontece com as infraestruturas urbanas de abastecimento de água, recorrer a financiamento público para a O&M de infraestruturas de água bruta deve ser considerada uma medida temporária e as cobranças ao usuário (pelo serviço de adução de água bruta) devem, ao longo do tempo, recuperar todos os custos para garantir a sustentabilidade financeira dos operadores de infraestruturas.

O financiamento da operação e da manutenção (O&M) de grandes infraestruturas de armazenamento (água bruta) é essencial para a segurança do abastecimento de água na bacia do PPA. O governo federal arca com os custos de capital de todos os principais projetos federais de infraestrutura de água bruta, mas não é responsável pelos custos de O&M. Na prática, os pagamentos das agências estaduais (AESA e IGARN) ao operador dos reservatórios federais (DNOCS) para receber água bruta cobrem apenas parte dos custos de O&M dos reservatórios federais. O DNOCS (ou seja, o tesouro nacional) cobre a diferença. Recentemente, o Ministério do Desenvolvimento Regional (MDR) apresentou ao Congresso projeto de lei para obrigar os usuários a cobrir os custos de operação e manutenção dos reservatórios federais.

O mesmo princípio deve ser aplicado para cobrir os custos de O&M do PISF quando ele entrar em operação. Em outras palavras, os usuários de recursos hídricos nos quatro estados atendidos pelo PISF (Ceará, Paraíba, Pernambuco e Rio Grande do Norte) devem pagar ao seu operador federal (CODEVASF) o suficiente para financiar integralmente os planos de O&M. A ANA (na qualidade de reguladora de água e saneamento desde 2020) planeja revisar a estrutura das cobranças pelo uso de recursos hídricos para permitir a recuperação dos custos de O&M do PISF (estimado em US$ 53 milhões por ano para os quatro estados atendidos pelo PISF). Uma nova estrutura consistiria de dois componentes: uma cobrança permanente (US$ 0,05/m3) para cobrir os custos fixos de O&M do PISF, e uma cobrança volumétrica adicional (US$ 0,09/m3) para recuperar o custo de bombeamento de água do PISF (principalmente o custo de energia elétrica). As mesmas estruturas e taxas de cobrança se aplicariam aos quatro estados atendidos pelo PISF. O financiamento de O&M de outras infraestruturas de água bruta (não federais) ficaria a critério da política estadual de recursos hídricos.

A falta de uma política explícita de recuperação de custos para a O&M da infraestrutura ameaça a sustentabilidade da oferta de água bruta. Uma solução simples é que os usuários de recursos hídricos paguem o custo total de operação e manutenção da infraestrutura de abastecimento de água bruta. Em outras palavras, a AESA, o IGARN e qualquer outro grande usuário de água (por exemplo, cidades, associações de irrigação) deveriam pagar pelo uso de recursos hídricos à CODEVASF e ao DNOCS para cobrir os custos de O&M dos reservatórios e do PISF. Da mesma forma, no caso da infraestrutura não-federal de abastecimento de água bruta, os custos de O&M deveriam ser totalmente ressarcidos pelos usuários. Além disso, as cobranças criam um estímulo para reduzir o consumo de água (e melhorar a eficiência do uso da água), incentivando mudanças de comportamento.

Todos os grandes usuários de água deveriam pagar os custos de O&M igualmente (a taxa de cobrança volumétrica para todos) para melhorar a viabilidade (por exemplo, a aceitabilidade pública) e transmitir a todos a mesma mensagem quanto à conservação da água. Para manter a mensagem referente à conservação para todos, qualquer subsídio cruzado entre setores de água bruta (por exemplo, entre cidades e associações de irrigação) deveria ser implementado separadamente, por exemplo, introduzindo uma taxa adicional sobre a cobrança de cidades, cujas receitas seriam redistribuídas para associações de irrigação.

O apoio financeiro público para perímetros irrigados coletivos equivale a subsidiar os custos de fornecimento de água para irrigação na produção agrícola, que está sujeita às regras de subsídios da Organização Mundial do Comércio (OMC)(Kibel, 2014[24]). Essa prática desvirtua o uso da água ao incentivar a irrigação em detrimento de outros usos da água. A gestão dos recursos hídricos de irrigação poderia ser mais produtiva se direcionasse os recursos públicos para pagamentos diretos, a fim de ajudar os produtores rurais a comprar tecnologias para economia de água nas propriedades (por exemplo, irrigação por gotejamento).

Um argumento a favor do financiamento público para O&M de infraestruturas de armazenamento e transporte de água bruta é o benefício público, como a regulação da vazão de rios, água adicional para o meio ambiente, etc. Debates sobre os impactos e os benefícios da infraestrutura de abastecimento de água bruta deveriam ser documentados e fundamentados em argumentação técnica e científica para informar a formulação de políticas públicas. Se benefícios públicos forem demonstrados, eles poderiam justificar a cobertura dos custos de O&M pelo CBH, como parte de seu papel como autoridade de GIRH para a bacia hidrográfica do PPA. Isso implica o financiamento do CBH por meio da alocação de receitas das cobranças pelo uso de recursos hídricos, de acordo com o princípio "a água paga a água" implementado no Brasil. Na França, por exemplo, em 2021, a Agência de Água de Adour-Garonne destinou 4 milhões de euros para apoiar as comunidades locais na adequação de suas barragens ao objetivo de "recuperar os volumes inicialmente disponíveis e melhorar sua gestão em benefício do meio ambiente”. Emblematicamente, o CBH poderia fornecer assistência financeira para O&M, se a infraestrutura proporcionasse benefício ambiental e não apenas benefício econômico. Ao promover benefícios ambientais, o “esverdeamento” da infraestrutura de água bruta (por exemplo, com a busca de co-benefícios para a biodiversidade ou para o clima, por meio do plantio de árvores ao longo dos canais ou a montante dos reservatórios) aumentaria a aceitabilidade do apoio ao CBH.

A criação de mais espaço para a infraestrutura de água “verde” permitiria a aplicação do princípio do beneficiário-pagador. Isso implicaria solicitar aos beneficiários (cidades, atividades econômicas) da bacia do PPA que remunerassem os serviços de regulação da vazão dos rios abastecidos pelos ecossistemas. O CBH ainda poderia fornecer assistência financeira para a O&M de infraestruturas de água “verde” (por exemplo, pântanos, planícies aluviais, florestas aluviais), já que proporcionam benefícios ambientais. O Corpo de Engenheiros do Exército dos EUA criou o Engineering with Nature: An Atlas, uma compilação de 118 projetos implementados em todo o mundo que mostra os benefícios e a diversidade das soluções baseadas na natureza (SBN), e como eles podem ser implementados.

Painéis solares flutuantes já podem ser vistos na bacia do PPA (no estado da Paraíba), com impacto nos recursos hídricos. Os possíveis efeitos de cobrir um reservatório com painéis solares flutuantes incluem, mas não se limitam a: redução da misturas dos reservatórios pela ação do vento, mudança na flora, fauna e organismos relacionados (pássaros, peixes, plantas aquáticas, mexilhões, insetos, algas, bactérias, vírus, etc.) presentes no reservatório ou a sua volta (Mathijssen et al., 2020[25]). O operador dos painéis solares deveria fornecer compensação financeira ao operador da infraestrutura hídrica pelos efeitos colaterais na vida aquática e na qualidade da água. O valor da compensação deveria ser utilizado para proteger e restaurar a vida aquática e a qualidade da água. No entanto, uma parte poderia ser destinada ao financiamento da O&M da infraestrutura de água bruta, o que equivaleria a aplicar uma espécie de princípio “a eletricidade paga a água".

Mesmo que tenha sido usada principalmente para promover o desenvolvimento urbano (princípio “cidade paga a cidade”), a captura de valor pode ser considerada uma ferramenta para o financiamento da infraestrutura de água bruta (Inter-American Development Bank, 2016[26]). Em outras palavras, o aumento do valor das terras atendidas por infraestruturas de água bruta poderia ser tributado durante um período específico e as receitas fiscais, destinadas à O&M dessa infraestrutura (princípio “a terra paga a água”). O Brasil possui sistema tributário vinculado ao valor da terra, tanto em áreas urbanas (Imposto Predial e Territorial Urbano, IPTU) quanto em áreas rurais (Imposto Territorial Rural, ITR). Esses impostos poderiam refletir, parcialmente, o aumento do valor da terra e da propriedade resultante da construção de infraestrutura hídrica. No entanto, a destinação da receita não é vinculada e depende do executivo local. A arrecadação é de competência municipal

Todas essas fontes de financiamento poderiam ser mobilizadas para facilitar a transição para a recuperação total dos custos de O&M por meio de cobranças pelo serviço de adução de água bruta e, no caso da infraestrutura “verde”, por meio de pagamentos por serviços ecossistêmicos (Figura 2.7).

O financiamento da O&M da infraestrutura de água bruta por meio de cobranças aplicadas aos grandes usuários de água, conforme exigido pelo princípio do usuário-pagador, levanta a questão da precificação da água para os usuários finais que absorverão essas cobranças. As tarifas por si só deveriam ser suficientes para recuperar os custos de operação e manutenção da infraestrutura de oferta de água. Contar com o orçamento público para complementar as receitas tarifárias facilitaria a obtenção de ajuda reembolsável (empréstimos, títulos, ações). No entanto, essa abordagem de “recuperação sustentável de custos” deve ser vista como um passo intermediário em direção ao objetivo final de “recuperação total de custos” (Cox and Börkey, 2015[27]).

O Termo de Compromisso de 2006 entre o Governo Federal e os estados estabeleceu que os custos operacionais e de manutenção do PISF seriam cobertos pelos estados. Embora os estados tenham concordado em estabelecer tarifas, o termo não especifica que apenas os proprietários pagariam. Dois estados da região do PISF (Ceará e Paraíba) já cobram pelo uso de recursos hídricos e isso afeta todos os setores, incluindo a irrigação. No entanto, as receitas são insuficientes para cobrir os custos de O&M do PISF. Além do caso do PISF, irrigantes em distritos de irrigação coletiva e pública podem pagar tarifas para cobrir os custos de O&M da irrigação. Nesses casos, as tarifas pelo uso de recurso hídrico são uma obrigação estabelecida pelo operador estadual, mas não cobririam os custos adicionais relacionados ao PISF.

Com o estabelecimento de um teto para a tarifa de baixo consumo, o aumento das tarifas em bloco (increasing block tariffs - IBT) transmite uma mensagem mais forte quanto à conservação, em comparação com as tarifas volumétricas simples, mas acarreta custos administrativos mais altos. As cobranças ao usuário (pelo serviço de adução de água bruta) necessárias para cobrir os custos totais de operação e manutenção de água bruta (reservatórios e PISF) aumentarão o valor da conta de água para os usuários finais. As questões de acessibilidade precisam ser abordadas. A precificação social da água no varejo pode ser considerada por meio da diferenciação da tarifa volumétrica ou do tamanho do primeiro bloco (bloco barato), ou ambos, com uma tarifa mais baixa ou bloco de maior tamanho para famílias de rendas mais baixas (por exemplo, as que recebem benefícios sociais). A mensagem quanto à conservação de água seria, no entanto, mais bem resguardada com o estabelecimento da mesma tarifa volumétrica/tamanho do bloco para todos, mas acrescentando uma taxa adicional na conta de água dos ricos e redistribuindo a renda aos mais pobres para ajudá-los a pagar a conta de água (subsídio cruzado entre ricos e pobres). O mesmo raciocínio se aplica aos irrigantes.

O baixo nível de vida (PIB per capita) na Bacia Hidrográfica do rio Pianco-Piranhas-Açu não deve ser um obstáculo para a recuperação dos custos de operação e manutenção da infraestrutura de água bruta por meio de cobrança pelo uso de recursos naturais (e, em última análise, contas de água), considerando os benefícios de uma infraestrutura hídrica bem conservada para o bem-estar da população da bacia. Por exemplo, a área irrigada ou os ganhos de produtividade podem resultar em melhoria à saúde. O risco de falta de energia que o Brasil conheceu nos últimos anos devido a níveis insuficientes de água em barragens hidrelétricas deve sensibilizar as partes interessadas na bacia do PPA para a necessidade de garantir O&M adequada para a infraestrutura de água bruta na bacia.

O princípio de “a água paga a água” consiste em atribuir os valores da cobrança pelo uso de recursos hídricos (water abstraction charges) auferidos na bacia do PPA à gestão da bacia do PPA. A OCDE (2017[28]) avaliou o sistema de cobranças pelo uso de água no Brasil e sugeriu possíveis aperfeiçoamentos (Quadro 2.11). A OCDE (2017[28]), também forneceu uma lista de verificação (checklist) para ajudar o Brasil a implementar a cobrança pelo recursos hídricos (water charges) (Quadro 2.12).

A Lei das Águas de 1997 introduziu a cobrança pelo uso de recurso hídrico e estipulou a alocação da receita das cobranças para projetos de gestão hídrica na bacia onde foi coletada. Entretanto, questões de viabilidade (aceitação pública/política) retardaram a introdução dessas cobranças no Brasil. Apenas alguns estados as aplicam, como o Ceará e a Paraíba.

Desde 2015, três bacias hidrográficas no estado da Paraíba introduziram cobranças pelo uso de recursos hídricos. Contudo, sua implementação é lenta, com uma taxa de recuperação inferior a 10% em 2017 (OECD, 2017[28]). A AESA arrecadou US$ 890.000 em cobranças em 2020. Esta quantia foi totalmente destinada a projetos de reuso de águas residuais na agricultura nas três bacias e para O&M dos reservatórios estaduais. No estado do Rio Grande do Norte, a introdução de tais cobranças tornou-se algo politicamente difícil em razão da seca (OECD, 2017[28]).

Discussões estão em andamento para introduzir cobranças pelo uso dos recursos hídricos na bacia hidrográfica do PPA e alocar parte das receitas para financiar O&M do PISF. Isso poderia ser justificado se os benefícios públicos do PISF fossem demonstrados. Enquanto isso, a ausência de cobranças na bacia hidrográfica do PPA compromete seriamente o financiamento do plano da bacia hidrográfica (presumindo a implementação do princípio de que a água paga a água). De fato, a sustentabilidade financeira do CBH é essencial na busca de sinergias entre a alocação da água e a gestão integrada de recursos hídricos (GIRH) (Figura 2.8).

A cobrança pelo uso dos recursos hídricos visa a proteger os corpos hídricos do risco de escassez. Na França, a Agência de Águas de Adour-Garonne, por exemplo, estipula valores diferentes de cobrança, dependendo da natureza e da fragilidade do recurso hídrico extraído. Da mesma forma, a alocação das receitas das cobranças ao CBH (aplicando o princípio “a água paga a água”) deve, em primeiro lugar, visar a evitar os riscos de escassez de água através da GIRH.

O valor de cobrança não deveria variar de acordo com a categoria do usuário, como é frequentemente o caso nos países da OCDE, onde os agricultores e, às vezes, a indústria se beneficiam de tarifas preferenciais. No caso das cobranças pelo uso da água, uma demonstração da conservação da água seria mais percebida estabelecendo-se o mesmo piso tarifário para todos os captadores, mas acrescentando-se uma taxa adicional sobre os captadores ricos e redistribuindo a renda para os mais desfavorecidos para ajudá-los a pagar o piso tarifário (subsídio cruzado entre os captadores). Uma outra forma de conceder subsídios cruzados entre os captadores ricos e os mais carentes, sem comprometer os incentivos à economia de água, seria alocar mais receitas das cobranças aos desfavorecidos, com valores superiores ao que eles pagam. É o que a Agência de Águas Adour Garonne faz para o setor agrícola (“o princípio da solidariedade”).

Ao invés de uma simples cobrança volumétrica, conforme implantada pela Agência de Águas Adour-Garonne, poderiam ser consideradas cobranças pelo uso de recursos hídricos com uma estrutura de blocos aumentada, com um primeiro bloco de tamanho reduzido para os corpos d’água com alto risco de escassez. Qualquer subsídio de eletricidade para os captadores deve ser eliminado antes da introdução de cobrança. O Quadro 2.13 apresenta visão geral do funcionamento das cobranças pelo uso de recursos hídricos na França.

Na bacia do PPA, existem graves problemas relativos à qualidade da água. Em algumas unidades de planejamento dentro da bacia, cerca de 85% do esgoto não é tratado. Os municípios são responsáveis pelo saneamento, mas têm recursos financeiros limitados para instalarem tratamento adequado. Esta questão é comum em muitos países em todo o mundo e a combinação de serviços pode ser um caminho a ser seguido. Na Espanha, o saneamento é geralmente feito no âmbito intermunicipal, permitindo, assim, um mecanismo de solidariedade financeira entre grandes e pequenos municípios. Pequenos vilarejos que não têm condições de arcar com os custos do tratamento da água participam do planejamento e da gestão de recursos hídricos no âmbito intermunicipal. Alguns municípios trabalham com operadores privados por meio de parcerias público-privadas para a concessão ou contrato de arrendamento (como, por exemplo, em Valência). Na França, as cobranças pela poluição da água são diferenciadas de acordo com os usuários, tais como residências, agricultura e indústria - embora elas possam ser as mesmas entre os usuários. As cobranças pela poluição de origem doméstica são baseadas no consumo de água da residência. A Tabela 2.5 compila a cobrança por poluição para usuários domésticos da bacia do rio Adour-Garonne e a Tabela 2.6, as cobranças para usuários não-domésticos. Essas cobranças contrastam com aquelas referentes à pecuária e à poluição de origem não-doméstica, como a agricultura e as indústrias, que se baseiam, respectivamente, no número de animais (acima de determinável nível) e na descarga de poluentes.

Sistemas de outorgas negociáveis podem gerir o risco de escassez hídrica de forma rentável. A comercialização da água refere-se ao processo de compra e venda de direitos de uso da água. Os termos da comercialização podem ser permanentes ou temporários, dependendo do status legal dos direitos sobre os recursos hídricos. Alguns economistas argumentam que a comercialização da água pode promover alocação de água mais eficiente porque preços baseados no mercado atuam como incentivo para os usuários alocarem recursos de atividades de baixo valor em atividades de alto valor. Debate-se até que ponto os mercados de água, na prática, operam eficientemente e quais são os resultados sociais e ambientais desses programas de comercialização de água e a ética da aplicação de princípios econômicos a um recurso como a água. Os mercados de comercialização de água foram estabelecidos em alguns países do mundo, incluindo a Austrália, o Chile e os Estados Unidos. No Arizona e na Califórnia, esses mercados são utilizados para realocar outorga de direitos de uso de recursos hídricos (water rights) entre os agricultores e os municípios, especialmente durante as secas. Esses mercados geram receitas para os agricultores porque é mais barato para os municípios pagar os agricultores para não usarem a água que construir novas instalações hídricas.

No Brasil, os direitos de uso da água podem ser concedidos tanto a entidades públicas quanto privadas. A outorga de direito de uso de recursos hídricos não transfere a propriedade dos recursos hídricos, mas permite o seu uso por um período de tempo estabelecido, sob condições específicas (OECD, 2017[28]). Um projeto de lei para introduzir mercados de água foi apresentado ao Congresso em 2017, mas o texto ainda não foi analisado.

O estabelecimento de um mercado de água requer a fixação de um limite à adução que seja aceitável para todas as partes interessadas, incluindo o meio ambiente e as comunidades locais. A abordagem mais econômica para realizar isso consiste em construir uma “matriz de risco” que ajude a gerenciar conflito de escolhas (trade-offs) entre os usos da água, ao mesmo tempo em que proteja a integridade dos recursos hídricos. É também a melhor maneira de se evitar conflitos sobre o uso e de desenvolver uma “cultura da água”. O primeiro passo é identificar e definir (cientificamente) o conjunto de recursos hídricos. Em segundo lugar, os riscos aos valores ambientais, culturais e sociais dependentes da água (“valores in situ”), assim como os custos de oportunidade de não extrair a água para o desenvolvimento econômico (“risco de desenvolvimento”). Em terceiro lugar, o nível aceitável de adução de água deverá ser estabelecido pela ponderação dos riscos in situ versus os riscos de desenvolvimento (matriz de risco). A sofisticação desta abordagem depende do nível de exposição aos riscos (valor dos investimentos previstos, número de populações dependentes dos recursos hídricos, presença de áreas naturais protegidas etc.).

O ideal seria que a área geográfica de um mercado de água estivesse no âmbito da bacia do PPA, por ser a bacia a unidade hidrológica mais natural. Entretanto, é comum organizar os mercados de água no âmbito da sub-bacia (de captação), como na Austrália, ou mesmo no âmbito do distrito de irrigação, como no Chile, por razões práticas (presença de medidores) ou de viabilidade administrativa. Quanto maior o número de participantes do mercado, mais econômico o mercado será na alocação da água. Idealmente, toda a água da bacia deveria estar envolvida no mercado para preservar a lógica hidrológica.

O período de validade de outorgas de direitos de uso de recursos hídricos deveria ser diferenciado de acordo com o risco de escassez, conforme mapeado na bacia do PPA, com alocações anuais para áreas em risco e direitos de uso (entitlements) de longo prazo para áreas bem abastecidas de água. Estas obteriam cotações mais altas nos mercados, pois oferecem maior segurança de abastecimento.

Parte dos lucros dos leilões dessas outorgas cobriria os custos operacionais do mercado (com corretores, etc.), mas a maior parte seria destinada ao financiamento da GIRH. O financiamento público da política de desenvolvimento agrícola poderia compensar o impacto, nas comunidades locais, das transferências permanentes das outorgas de direito de uso de recurso hídrico para outra região. Ora, se as transferências permanentes não-reguladas forem permitidas, existe o risco de concentrar a água nas mãos de alguns consumidores ricos, que poderiam comprar toda a água de numerosos pequenos usuários. Isso pode ter consequências na dinâmica social local e regional, nas taxas de desemprego e nas migrações demográficas. Portanto, recomenda-se uma estrutura adequada para gerir custos e benefícios do mercado de água, conforme proposto por Wheeler et al. e Grafton (2017[31]; 2019[32]). De acordo com essa estrutura, os arranjos institucionais e de governança existentes, bem como custos e benefícios do comércio, devem ser avaliados antes da implementação do mercado da água. Assim, mudanças institucionais e de políticas devem ser implementadas, incluindo as outorgas de direitos de uso da água e as capacidades de monitoramento e fiscalização. Por fim, as externalidades devem ser continuamente monitoradas e as mudanças no mercado de água devem ser implementadas conforme necessário.

Providências devem ser tomadas para evitar a acumulação (hoarding) - por meio de política de “use ou perca” - e a captura regulatória pelo operador do mercado. Monitoramento via satélite e modelagens da vazão fluvial poderiam ajudar a controlar e fazer valer as outorgas de uso de águas superficiais. Os Quadro 2.14 e Quadro 2.15 apresentam uma visão geral do funcionamento dos mercados de água no oeste dos Estados Unidos e na Bacia de Murray-Darling, na Austrália.

Em contraste com o uso de apenas um instrumento econômico, as combinaçõesde instrumentos podem aumentar a relação custo-efetividade e a aceitação do público quanto à consecução dos objetivos de gestão da bacia do PPA. Em seguida, serão analisadas três  combinações de instrumentos: (1) cobrança pelo uso de recursos hídricos e mercados de água; (2) cobrança pelo uso de recursos hídricos e regulação direta; e (3) mercados de água e regulação direta.

Quando cobranças pelo uso de recursos hídricos são aplicadas ao mesmo público-alvo na presença de um mercado de água (cap-and-trade de outorgas de água), o efeito causado difere de acordo com o valor da cobrança. As cobranças fixadas a uma taxa inferior ao preço inicial de mercado não alteram o nível geral de adução fixado, mas reduzem a demanda por outorgas; o preço de mercado alinhar-se-á gradualmente à taxa de cobrança (se todos adutores forem obrigados por ambos os instrumentos). Se o valor da cobrança for mais elevado que o preço de mercado, o incentivo para redução marginal (economia de água) aumenta, e a redução, então, supera o limite estabelecido pelo mercado de água. A demanda por outorgas de água, e, consequentemente, seus preços, caem para zero, sendo as cobranças pela captação de água o único instrumento ativo.

Apesar dessa aparente incompatibilidade em termos de efetividade, a conjugação de instrumentos poderia melhorar custo-eficiência (cost-efficiency) quando as cobranças pelo uso dos recursos hídricos forem utilizados para garantir um preço mínimo de mercado ("piso"), considerando que todos os adutores estejam sujeitos a ambos os instrumentos (ou seja, se os dois instrumentos forem aplicados às mesmas unidades de adução de água). Embora um "piso" possa reduzir a eficiência estática em situações em que o mercado de água apresente preços de outorgas abaixo do valor mínimo, tal efeito, bem como a segurança de preço-relativo que produz, normalmente, aumenta a eficiência dinâmica em comparação com um sistema de outorgas negociáveis “puro” (tradable permit system - TPS) . A utilização de um preço mínimo ajudaria na arrecadação sobre rendas inesperadas (windfall rents) geradas pela livre alocação de outorgas. As cobranças pela captação de água também poderiam ser utilizadas para assegurar um "teto de preços" (ou "preço de válvula de segurança"), permitindo aos captadores retirar água para a qual não possuem outorga em troca da cobrança de um valor máximo. No entanto, assegurar os custos de conformidade aos participantes do TPS por meio de um teto de preços reduz a certeza com relação aos resultados ambientais e pode diminuir os incentivos dinâmicos.

As cobranças pelo uso de recurso hídrico e os mercados de água podem levar à escassez hídrica temporária em diferentes setores e áreas geográficas (ou seja, um ponto crítico - hot spot - de escassez). A aplicação de uma cobrança adicional aos participantes de mercados de água localizados em sub-bacias, onde a retirada de água cria uma maior escassez marginal que em outras sub-bacias, pode resolver esse problema. A Figura 2.9 ilustra esse conceito. O captador B, cuja captação produz danos marginais muito maiores à escassez de água que outros captadores, está sujeito tanto ao mercado de água como à cobrança pelo uso dos recursos hídricos, o que aumenta o incentivo para economizar água. Se o valor da cobrança for igual à diferença entre o preço da outorga e os danos marginais totais da captação à escassez de água, como ilustrado, então a eficiência estática total é mantida e a eficiência, como um todo, aumenta (embora os preços das outorgas diminuam se o limite do mercado de água não for ajustado para compensar).

Embora a combinação de instrumentos de precificação com outros baseados em quantidade possa produzir maior bem-estar social do que quando usados isoladamente, pouquíssimas dessas combinações têm sido utilizadas na prática. A aplicação de uma cobrança pelo uso de recursos hídricos juntamente com um mercado de água aumenta a carga administrativa para os participantes e para as autoridades relevantes. Os custos de transação associados à implementação e à administração de um mercado de água aumentam com o uso de “pisos” e “tetos” de preços. Entretanto, instrumentos híbridos de preço-quantidade melhoram a flexibilidade para lidar com as incertezas. Um piso, em um sistema cap-and-trade, fornece incentivo contínuo para economizar água, se os custos marginais dessa economia estiverem sobrevalorizados (assim como a geração mínima de receita), enquanto um teto de preços evita custos excessivos, se os custos marginais de economizar água estiverem subvalorizados (juntamente com a certeza de custo-máximo da conformidade). Da mesma forma, um limite (cap) possibilita a garantia de economia de água que a cobrança pela captação de água, por si só, não pode proporcionar (reduzindo, assim, a aversão à cobrança).

Quando ambos os instrumentos visam os mesmos captadores, a regulação direta ajuda a superar falhas de mercado (por exemplo, problema agente-principal) e falhas de informação que prejudicam a eficácia dos instrumentos de precificação. Por outro lado, as cobranças pelo uso de recursos hídricos podem reduzir o efeito "rebote" que a regulação direta pode provocar2. A regulação direta combinada com um instrumento de precificação também pode reduzir a ocorrência de pontos críticos de escassez hídrica; enquanto os instrumentos de precificação influenciam a retirada total de água, a regulação direta pode influenciar a localização da captação e seu momento (timing).

Em termos de eficiência de custo, adicionar a regulação direta à cobrança pelo uso de recursos hídricos pareceria supérfluo se o custo marginal da economia de água previsto na regulação fosse mais baixo que o valor da cobrança. Os captadores, certamente, já teriam cumprido tal regulação para conseguir uma economia de água a um custo menor do que o valor da cobrança. A Figura 2.10 ilustra essa situação para um determinado captador cuja economia de água é necessária ou incentivada pela regulação. No mundo real, no entanto, a eficiência estática aumenta se a regulação exigir ou provocar economias de água, com custos marginais inferiores ao valor da cobrança pelo uso de recursos hídricos (por exemplo, níveis de rigor A a C, na Figura 2.10), que não teriam sido alcançadas devido a falhas de mercado. Entretanto, se os níveis de economia de água exigidos pela regulação tiverem um custo marginal maior que o valor da cobrança pela captação, então a cobrança não resultará em nenhuma economia adicional de água (por exemplo, níveis de rigor D e E, na Figura 2.10).

Geralmente, para um determinado nível de economia de água, a combinação de um instrumento de precificação com um instrumento de regulação direta, muitas vezes, levaria a custo-efetividade maior do que usar apenas a regulação direta, pois os instrumentos de precificação equilibram o incentivo marginal da economia de água quando a regulação direta não consegue fazê-lo. Além disso, um aumento previsível (pré-planejado) no rigor das exigências regulatórias e dos valores das cobranças pela captação de água amplia o custo-eficiência dinâmico.

Ao combinar um instrumento de precificação com a regulação direta para lidar com a ocorrência de pontos críticos (hotspots) de escassez, a eficiência estática é mantida, com um aumento da eficiência total potencial, se o custo marginal adicional da economia de água do instrumento secundário for igual à diferença entre o custo marginal do instrumento primário e o dano marginal à escassez de água3.Como discutido acima, esse também é o caso quando a cobrança pela captação de água é combinada com um sistema de outorgas negociáveis (Figura 2.9).

Uma combinação bem planejada de regulação direta e cobranças pelo uso de recursos hídricos seria mais aceitável pública e politicamente que a implementação de um alto valor de cobrança ou de regulação rigorosa para atingir determinado nível de economia de água. O uso de regulação para complementar uma cobrança pela captação de água pode reduzir a incerteza sobre ações de curto prazo e de mais longo para a economia de água, especialmente se o valor da cobrança for muito baixo (em comparação aos custos de medidas de economia de água)4. Entretanto, a flexibilidade dessa combinação provavelmente diminuiria à medida que o rigor da regulação aumente.

A regulação direta pode ser usada para complementar um mercado de água para evitar pontos críticos de escassez hídrica. No entanto, complementar um mercado de água com uma regulação direta qualquer, sem levar em consideração seu escopo ou nível de restrição, não reduz o volume total de água captada que, ceteris paribus, permanecerá, no agregado, perto do limite máximo (cap). Da mesma forma, o uso de mercados de água para apoiar a regulação direta não reduz a economia total de água além do que se esperaria se a regulação fosse usada isoladamente (porque uma vez que cada captador atende a suas exigências regulatórias, a demanda e o preço das outorgas de água caem para zero).

Um mercado de água (com limite total imposto por um sistema de cap-and-trade) pode ser usado para aumentar a flexibilidade e reduzir o custo de cumprir as regulações específicas para subgrupos (por exemplo, setor, distrito de irrigação, tipo de indústria). Captadores com um desempenho melhor que o previsto na regulação podem gerar créditos que aqueles com desempenho pior poderão comprar para compensar seu déficit. Essa é a essência de um sistema de linha de base e crédito (baseline-and-credit system).

O uso de regulação direta para complementar um mercado de água tem impacto positivo no custo-efetividade estático e dinâmico, se a regulação reduzir falhas de mercado e de informação que limitam a influência do sinal de preço produzido pelo mercado de água. Entretanto, a regulação deve exigir ou incentivar o uso de tecnologias ou comportamentos para economia de água com um custo marginal abaixo do preço da outorga para manter o custo-efetividade estático. Caso contrário, os custos totais de conformidade aumentam com a demanda por outorga e há uma provável redução dos preços das outorgas, em contrapartida, diminuindo os benefícios de eficiência de um mercado de água.

Uma exceção a isso é quando a regulação direta tenta resolver os pontos críticos de escassez hídrica, com a imposição de custos marginais de economia de água iguais à diferença entre o preço da outorga e os danos marginais totais à escassez de água da captação em questão. Nesses casos, a eficiência estática é mantida e há um aumento de custo-efetividade econômico em geral.

O uso de um mercado de água juntamente com a regulação pode alcançar determinado nível de economia de água de forma mais eficiente (tanto estática quanto dinamicamente) do que o uso da regulação direta isoladamente. Isso acontece porque os instrumentos de precificação equilibram o incentivo marginal de economizar água quando a regulação direta não consegue fazê-lo. Entretanto, para manter custo-efetividade, o limite máximo e o piso do TPS devem ser estabelecidos considerando a economia de água esperada a partir da regulação.

A aceitação política será provavelmente diferente a depender de qual instrumento seja o primário ou o secundário. Usar a regulação direta para resolver problemas de pontos críticos em um mercado de água, provavelmente, aumentará os custos totais de conformidade, reduzindo, assim, a aceitabilidade em comparação a implementação isolada de um mercado de água. O mesmo se aplica a regulações mais gerais (por exemplo, desempenho mínimo ou padrões tecnológicos aplicáveis em geral), mesmo que as medidas ou os comportamentos induzidos tenham custos marginais inferiores aos do preço da outorga. A redução da flexibilidade que isso representa pode reduzir a aceitabilidade. Além disso, a natureza de um mercado de água implica que os preços das outorgas podem variar ao longo do tempo, algumas vezes consideravelmente. Embora possa levar a ineficiências e menor viabilidade, uma regulação direta complementar pode ajudar a resolver incertezas e garantir um nível mínimo de eficiência ambiental em curto prazo (e potencialmente em longo prazo). Além disso, ao associar um mercado de água a um instrumento regulatório, aumentando a flexibilidade e a possibilidade de reduzir os custos de conformidade, a aceitabilidade e a capacidade de lidar com as incertezas podem aumentar.

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As tabelas resumem as principais ações apresentadas no Capítulo 2.

Observações

← 1. A homogeneidade de fatores geomorfológicos, hidrográficos e hidrológicos caracteriza as Unidades de Planejamento Hidrológicos (UPH). UPHs incluem subdivisões da bacia hidrográfica, sub-bacias de rios tributários ou segmentos de rios principais com continuidade espacial.

← 2. O efeito rebote ocorre quando o aumento da eficiência do uso da água reduz o custo por unidade do bem agrícola ou industrial produzido (ou por unidade de água fornecida aos usuários finais), aumentando o consumo de água de acordo com a elasticidade-preço da demanda desses bens ou serviços.

← 3. Um instrumento "primário" estabelece o incentivo geral ou os requisitos para economia de água, com um escopo mais amplo do que o do instrumento "secundário" com o qual ele é combinado.

← 4. Uma regulação que exige a adoção de uma determinada tecnologia (por exemplo, irrigação por gotejamento) frequentemente induz uma mudança mais permanente que os incentivos de economia de água como instrumento de precificação pode provocar, que podem ser revertidos após o sinal de preço ser reduzido ou removido.

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