1. Auditoria de políticas públicas descentralizadas: Desafios para o Brasil

Em muitos países, a elaboração de políticas e a prestação dos serviços públicos ocorrem através de diferentes níveis de governo. Este cenário é especialmente recorrente no contexto de políticas relacionadas a serviços públicos essenciais aos cidadãos, tais como educação, saúde, infraestrutura e saneamento (OCDE, 2017[1]). Embora a descentralização possa resultar em um maior envolvimento dos cidadãos e melhorar a prestação de serviços públicos locais, também pode representar desafios para as entidades fiscalizadoras superiores (EFSs) em termos de sua capacidade de avaliar todo o ciclo da política através do acompanhamento da cadeia de prestação de serviços.

As EFSs que pretendam ter uma visão de como os processos e programas funcionam em todo o governo podem considerar a incorporação da dimensão de governança multinível em suas auditorias (ver Capítulo 3 para detalhes sobre como isso pode ser feito).

O desafio pode ser mais complexo em países onde o sistema de auditoria externa compreende não apenas a EFS, mas também vários órgãos de auditoria externa subnacionais com mandatos específicos para auditar governos regionais e locais. Nesses casos, a compreensão transversal do valor de certas políticas públicas descentralizadas pode exigir colaboração estratégica entre esses órgãos.

O Brasil conta com um sistema de execução de políticas públicas descentralizado, baseado em um sistema complexo de governança multinível. Da mesma forma, o sistema de auditoria externa brasileiro é também descentralizado. Os tribunais de contas federais, estaduais e locais do país podem melhorar seu próprio desempenho, impacto e relevância, através de uma supervisão mais coordenada das políticas descentralizadas. O presente capítulo introduz quais são os desafios e conceitos-chave para a elaboração e execução de políticas descentralizadas, apresentando a base dos capítulos subsequentes do relatório e das recomendações para que os tribunais de contas no Brasil fortaleçam sua auditoria e coordenação em um contexto descentralizado.

Descentralização geralmente se refere à transferência de poderes e responsabilidades do governo central para as autoridades eleitas em nível subnacional (governos estaduais, regionais, municípios, etc.) com um certo grau de autonomia. Os indicadores fiscais e institucionais mostram que a tendência geral dos governos em todo o mundo tem sido para a descentralização (OCDE, 2019[2]) (ver Quadro 1.1).

As reformas visando uma maior descentralização devem envolver uma mudança no papel dos governos centrais: de um papel direto na prestação de serviços para um papel de possibilitar, aconselhar e facilitar o trabalho dos governos subnacionais, assegurando ao mesmo tempo sua consistência. Em um cenário de responsabilidades compartilhadas, as políticas descentralizadas devem gerenciar a dependência mútua para alcançar objetivos comuns. (OCDE, 2019[2]).

A descentralização não é apenas um simples aumento do poder dos governos locais. A realidade é sensivelmente mais complexa, pois em todos os países, grande parte das responsabilidades é compartilhada entre os diferentes níveis de governo. Independentemente do grau de descentralização de um país, governos individuais ou departamentos governamentais raramente têm todo o poder e recursos necessários para responderem sozinhos, adequadamente, aos desafios políticos sob sua responsabilidade. Assim, independentemente do grau de descentralização das políticas, os diferentes níveis de governo precisam trabalhar em conjunto para atingir seus objetivos (Allain-Dupré, 2018[4]). Descentralização trata-se, portanto, de reconfigurar o sistema de governança multinível.

Há evidências de que quando a descentralização é adequadamente elaborada e implementada, ela produz uma série de benefícios, desde uma melhor prestação de serviços públicos locais e um maior envolvimento dos cidadãos até a redução da corrupção e um impacto positivo no crescimento. Isto geralmente coincide com uma melhor coordenação e alinhamento entre setores e partes interessadas, e uma melhor governança multinível (OCDE, 2019[2]).

No entanto, a elaboração/implementação insuficiente da descentralização e a falta de uma governança apropriada em vários níveis pode levar a uma execução subótima das políticas causada por lacunas, duplicações e sobreposições. Isto não só afeta o valor do investimento (público), mas também pode ter consequências para a prestação de serviços públicos e, portanto, para a vida dos cidadãos que dependem desses serviços.

O Brasil se destaca como uma exceção entre os países federalistas, pelo papel proeminente desempenhado pelos municípios, um alto grau de autonomia local e nenhuma relação hierárquica entre os governos estaduais e municípios. A Constituição Federal de 1988 elevou os municípios brasileiros ao status de entidades federativas, em pé de igualdade com os estados e o nível federal. Os governos locais não são subordinados ao governo federal; os municípios são autônomos, embora algumas questões municipais dependam da legislação do estado do município (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 21-24).

No Brasil, como é o caso em todos os países da OCDE, as responsabilidades pelas políticas descentralizadas são compartilhadas entre todos os níveis de governo – saúde, educação, seguridade social, assistência social, agricultura e distribuição de alimentos, moradia e saneamento, entre outros. Cada nível é autônomo na legislação e na prestação de serviços, desde que estes não entrem em conflito com os poderes exclusivamente previstos ou legislados pela União Federal. A Constituição Federal reserva explicitamente certos poderes para o governo federal, ao mesmo tempo em que fornece mandatos amplos e gerais aos governos estaduais e municipais. Aos Estados são reservadas “todas s competências que não lhes sejam vedadas” pela Constituição, enquanto aos municípios é atribuído "o poder de legislar sobre assuntos de interesse local" e de prestar "serviços públicos de interesse público local" (Constituição da República Federativa do Brasil, Art. 21-30).

Entretanto, a Constituição também delineia uma série de áreas de políticas públicas onde as responsabilidades são detidas simultaneamente pelo governo federal e pelos estados, levando a sobreposições entre os níveis de governo. Essas áreas incluem saúde, proteção social, cultura e esporte, proteção do meio ambiente e proteção do patrimônio histórico e cultural (Constituição da República Federativa do Brasil, Artigo 24). Além disso, a lei federal geralmente estabelece condições gerais que podem ser mais detalhadas e regulamentadas pelos estados e municípios.

Acordos multiníveis são particularmente cruciais para assegurar uma coordenação eficaz no caso de políticas descentralizadas, que são altamente fragmentadas no Brasil tanto do ponto de vista vertical como horizontal (OCDE, 2013[6]). No nível horizontal, as instituições brasileiras tendem a trabalhar principalmente em silos organizacionais, o que significa que cada ministério setorial tem sua própria visão territorial que não necessariamente está coordenada com outros ministérios. O resultado é que cada ministério, estado, agência ou empresa pública persegue sua própria estratégia e objetivos políticos, criando possíveis coberturas das políticas e lacunas nos objetivos.

Em relação à dimensão vertical, duas formas de acordos multiníveis são particularmente comuns no Brasil – acordos contratuais e pactos federativos:

  • Convênios e contratos são regularmente utilizados para a cooperação entre as instituições públicas no Brasil. Estes contratos padrão permitem esclarecer as responsabilidades de cada nível de governo: por um lado, as funções de coordenação, regulamentação e financiamento do governo central e, por outro lado, as tarefas a serem assumidas pelo município.

  • Pactos federativos são conjuntos de disposições constitucionais estabelecidas por ministérios setoriais com liderança do gabinete do presidente, geralmente após consulta e negociação com governos subnacionais. Esses órgãos elaboram um conjunto de objetivos, papéis, responsabilidades e acordos de financiamento em uma área específica de políticas para cada nível de governo. Quando um setor tem direito a transferências discricionárias, o ministério federal pode fazer com que tais transferências sejam condicionais à adesão ao pacto. Estes pactos podem ser de amplo alcance; um exemplo é o Pacto pela Saúde aprovado em 2006. Atualmente, as discussões estão orientadas principalmente para que se faça um pacto federativo para estabelecer novas regras de supervisão dos orçamentos federal, estadual e municipal.

Alguns ministérios desenvolveram sozinhos mecanismos para assegurar uma coordenação vertical. Este é o caso, por exemplo, do setor da saúde, que é altamente descentralizado entre estado e os municípios. O Ministério da Saúde coordena a elaboração e a implementação de políticas através de comissões tripartites e bipartites, incluindo representantes da saúde dos três níveis de governo que se reúnem uma vez por mês (OCDE, 2013[6]). Entretanto, várias iniciativas no diálogo intergovernamental foram suspensas nos últimos anos (por exemplo, o Ministério das Cidades e o Conselho Nacional das Cidades; este último foi responsável pela implementação e monitoramento da Política Nacional de Desenvolvimento Urbano). (OCDE/UCLG, 2019[7]; Diario Oficial da Uniao, 2019[8]).

A crescente tendência em direção ao compartilhamento de responsabilidades entre níveis de governo observada nas últimas décadas também tem repercussões para as áreas de accountability, prestação de contas e auditoria. Ter uma auditoria externa independente é crucial nos acordos de prestação de contas públicas (ver Quadro 1.3). Auditorias financeiras e de conformidade são necessárias para avaliar a confiabilidade dos relatórios financeiros e a regularidade das operações dos governos nacionais e subnacionais. As auditorias de desempenho ajudam as autoridades nacionais e subnacionais a prestarem contas sobre a eficácia e eficiência da execução de suas políticas.

Em geral, as funções da auditoria externa seguem acordos de prestação de contas. A responsabilidade descentralizada muitas vezes corresponde a ideia de accountability e prestação de contas múltipla e descentralizada, exacerbando a complexidade de haver "muitos olhos" e "muitas mãos" no controle público (ver Quadro 1.3). Se a EFS não for capaz de seguir e participar destes múltiplos acordos de controle descentralizado – por exemplo, por se encontrarem fora de sua jurisdição – enfrentará grande dificuldade para proporcionar uma visão transversal do desempenho das políticas.

As estruturas de auditoria externa são um elemento institucionalizado dos acordos de accountability e controle do governo e, como tal, não tendem a submeter-se a mudanças frequentes. Estas estruturas variam significativamente de um país para outro. Na maioria dos países, as EFSs examinam as receitas e despesas dos orçamentos públicos em nível central ou federal. A responsabilidade pela auditoria externa em nível subnacional, entretanto, pode diferir consideravelmente. A variedade de modelos explica-se pela tradição, história, sistema administrativo, etc. Em alguns países, as EFSs possuem mandato para auditar os governos locais. Em outros, diversos órgãos de auditoria externa, ou mesmo empresas de auditoria do setor privado, são responsáveis pela auditoria de diferentes níveis de governo. Ainda, em outros países, há uma mistura de ambos (EUROSAI, 2020[13]).

Em geral, dependendo dos mandatos da Entidade Fiscalizadora Superior e da existência e dos mandatos das instituições subnacionais de auditoria externa, as estruturas de auditoria externa podem ser organizadas de forma centralizada ou descentralizada (ver Quadro 1.4).

Um país tem uma estrutura centralizada de auditoria externa se não há instituições subnacionais de auditoria. A EFS centraliza a atividade de auditoria externa e, como principal ator do sistema, não compartilha seu mandato com atores de qualquer outro nível de governo. (Figura 1.1).

Com este arranjo não há risco de duplicação ou sobreposição nos mandatos de auditoria, e é possível garantir-se uma abordagem uniforme para os auditados e políticas de auditoria nos diferentes níveis de governo. Neste modelo, a transferência de poderes e responsabilidades do nível do governo central para as autoridades eleitas no nível subnacional, devido à descentralização, não representa um risco inerente à auditoria de toda a cadeia de execução de políticas em múltiplos níveis de governança.

Os principais riscos que podem surgir neste sistema são as lacunas na cobertura de auditoria em todos os níveis de governo, devido aos recursos limitados e as barreiras geográficas que podem dificultar o conhecimento das particularidades e dos desafios enfrentados pelos níveis locais. Dependendo do tamanho do país, as EFSs podem enfrentar esses desafios a partir da manutenção de escritórios locais, gerenciados diretamente pelo escritório central, que podem conduzir o trabalho no nível local. Este é o caso, por exemplo, no Chile, Grécia e África do Sul.

Nesta estrutura, múltiplos atores são responsáveis pela auditoria dos diferentes níveis de governo, mas a EFS e as instituições de auditoria subnacionais têm mandatos exclusivos: a EFS não tem mandato para auditar os níveis subnacionais de governo, que é de responsabilidade exclusiva das instituições de auditoria subnacionais (Figura 1.2). Este modelo não é comumente adotado. Os países que adotam esta estrutura incluem a Holanda, a Argentina e a Lituânia.

O mandato específico dos órgãos de auditoria subnacionais difere de acordo com o país. Por exemplo, este pode ou não incluir a instrução para realizar auditorias de desempenho. Além disso, as instituições de auditoria subnacionais podem ser organizadas em nível regional e/ou local. Essas entidades são, em geral, autônomas e decidem de forma independente sobre seus próprios programas de auditoria.

Apesar de permitir uma maior cobertura de auditoria quando comparado aos sistemas centralizados de auditoria externa, este sistema pode levar a lacunas na cobertura de auditoria, senão houver capacidade profissional uniforme em todos os níveis do sistema de auditoria. Além disso, a auditoria de políticas públicas prestadas através de arranjos multiníveis pode ficar comprometida, resultando na fragmentação da cobertura. Mecanismos de coordenação entre os atores desta estrutura são necessários para superar estes desafios.

Este tipo de estrutura de auditoria externa também é descentralizado. A EFS tem um mandato para auditar os níveis locais até certo ponto, e os órgãos de auditoria em níveis subnacionais podem ter mandatos complementares ou concorrentes. Esta estrutura também é relativamente comum dentro da INTOSAI e está presente no Brasil, Espanha e México.

Neste sistema, os órgãos de auditoria subnacionais são autônomos e podem decidir individualmente sobre seus programas de auditoria. A extensão do mandato de auditoria das EFSs nos níveis subnacionais de governo difere de país para país. A EFS normalmente tem um mandato para auditar recursos advindos do nível central/nacional e transferidos para níveis subnacionais (abordagem "seguir o dinheiro"). Em alguns países, a EFS também possui um mandato para auditar políticas nacionais prestadas nos níveis subnacionais, e políticas subnacionais sob certas circunstâncias.

Este modelo pode permitir maior flexibilidade e oportunidades para que as instituições de auditoria promovam uma maior cobertura de auditoria – em relação a entidades auditadas e quanto às políticas públicas incluindo políticas prestadas através de acordos multiníveis. Para isto, entretanto, as instituições de auditoria devem implementar mecanismos eficientes de coordenação para evitar duplicações, lacunas e sobreposições no trabalho de auditoria.

Esses três riscos estão presentes em ambos os tipos de estrutura de auditoria descentralizada, particularmente quando as políticas centrais/nacionais são prestadas através de mecanismos descentralizados. Nesses casos, os acordos de prestação de contas e acordos de controle podem não corresponder à estrutura de auditoria externa.

O sistema de auditoria externa no Brasil é composto por 33 tribunais de contas, cada tribunal chefiado por um plenário colegiado composto de ministros ou conselheiros que tomam decisões em conjunto. Os tribunais atuam nos três níveis de governo – federal, estadual e municipal. No nível federal, o Tribunal de Contas da União (TCU) é responsável por examinar o orçamento e recursos federais, bem como por (entre outros) realizar auditorias a pedido do Congresso Nacional; supervisionar as entidades públicas federais; e investigar as queixas apresentadas por cidadãos, partidos políticos, associações ou sindicatos envolvendo irregularidades na aplicação dos recursos federais. O TCU também é responsável por supervisionar a aplicação dos recursos federais transferidos para os estados, o distrito federal e os municípios.

Os Tribunais de Contas do Estado (TCEs), são responsáveis pela auditoria a nível estadual. Cada um dos 26 estados da federação tem seu próprio Tribunal de Contas, que é financeiramente independente e tem total autonomia para administrar sua própria estrutura e decidir sobre seu programa anual de auditoria. O Distrito Federal conta, igualmente, com seu próprio tribunal.

Os TCEs também são responsáveis pela auditoria dos municípios de 23 estados. Além dos TCEs, os estados do Pará, Goiás e Bahia criaram Tribunais de Contas dos Municípios (TCMs), responsáveis pela auditoria exclusiva dos seus respectivos municípios. Além disso, dois municípios estabeleceram seus próprios Tribunais de Contas Municipais: São Paulo e Rio de Janeiro (respectivamente, o Tribunal de Contas do Município de São Paulo e o Tribunal de Contas do Município do Rio de Janeiro).

A organização, tamanho e estrutura desses tribunais de contas (TCs) variam consideravelmente de uma instituição para outra. A composição do plenário e dos órgãos técnicos e o foco do trabalho de auditoria também podem diferir (por exemplo, os TCs no norte do país podem selecionar mais frequentemente auditorias relacionadas a questões ambientais, por conta de sua localização geográfica). Os tipos de auditorias que realizam, no entanto, não diferem drasticamente. Por exemplo, em 2018, para a maioria dos TCs, as auditorias de conformidade representaram pelo menos 90% do número total de auditorias realizadas naquele ano, e apenas um TC relatou que as auditorias de conformidade representaram menos de 50% do número total de auditorias realizadas (OECD-TCs Survey, 2020).

Os mandatos dos tribunais de contas subnacionais estão descritos na Constituição de cada estado e estão definidos mais detalhadamente nos estatutos e regulamentos internos de cada uma dessas instituições. Em geral, a maioria das Constituições dos estados e do estatuto dos tribunais reproduzem as disposições da Constituição Federal aplicáveis ao TCU – incluindo o artigo 71, VI, que estabelece o mandato do TCU sobre as transferências federais. Portanto, em termos gerais, cada tribunal de contas é responsável por supervisionar a aplicação dos recursos transferidos pelo nível de governo relevante (por exemplo, um estado) para outros níveis (municípios ou outros estados). Algumas Constituições também delegam a responsabilidade pela supervisão dos recursos recebidos de transferências de outros níveis de governo (é o caso, por exemplo, do Distrito Federal e dos estados de Minas Gerais e São Paulo).

Tais disposições e mandatos são necessários para a auditoria de arranjos multiníveis comuns no Brasil. Estes arranjos incluem, por exemplo, convênios, contratos que são regularmente utilizados para cooperação entre instituições públicas no Brasil, e os pactos federativos, acordos que incluem um conjunto de objetivos, papéis, responsabilidades e acordos de financiamento em uma área específica de políticas, para cada nível de governo (OCDE, 2013[6]). A relevância dos acordos e financiamentos multiníveis no Brasil é demonstrada pelo fato de que a receita tributária de fontes próprias representaram 34% da receita municipal total em 2016 no Brasil, contra 65% de transferências da União e dos governos estaduais (em comparação com 44,5% e 37,2% respectivamente, em média, nos países da OCDE) (OCDE, 2019[2]).

Os mandatos dos TC criam a necessidade de estruturas e acordos de coordenação envolvendo todos os atores do sistema de auditoria externa no Brasil. Na ausência de tais acordos, os mandatos podem resultar em duplicação, fragmentação e sobreposição da cobertura de auditoria, particularmente em relação às políticas públicas prestadas através de arranjos multiníveis.

A sobreposição de tarefas entre níveis de governo é mencionada repetidas vezes como um sério desafio nas revisões territoriais e pesquisas econômicas da OCDE. A descentralização apresenta riscos para o desempenho das políticas quando não gerenciada adequadamente. Em geral, a descentralização apresenta desafios para os governos subnacionais porque requer certas capacidades econômicas, políticas e administrativas que podem não estar presentes em municípios menores.

A dimensão fiscal também apresenta desafios. Um dos mais frequentemente mencionado é o desalinhamento das responsabilidades atribuídas aos governos subnacionais com os recursos a estes disponíveis. Mandatos sem recursos ou com recursos insuficientes – quando os governos subnacionais são responsáveis pela prestação de serviços ou pela gestão de políticas públicas, mas não dispõem dos recursos necessários – também são comuns (OCDE, 2019[14]).

A grande dependência de transferências de fundos de governos centrais também pode reduzir os incentivos dos governos subnacionais para adotarem comportamento fiscal responsável. Os governos subnacionais precisam de receitas de fonte própria porque estas contribuem para a responsabilidade e eficiência da prestação de serviços públicos locais. Embora seja difícil formular uma regra geral para o grau ideal de autonomia fiscal, as autoridades locais devem contar com suas próprias receitas para financiar seus serviços à margem (OCDE, 2019[14]).

Outro importante desafio colocado pela descentralização é o das atribuições que se sobrepõem entre os níveis de governo. A falta de clareza na atribuição de responsabilidades torna a prestação de serviços e a elaboração de políticas mais onerosas. Além disso, contribui para um déficit democrático ao criar confusão entre os cidadãos a respeito de qual agência ou nível de governo é responsável pelo quê ou qual política pública. A descentralização desequilibrada, na qual as diversas áreas políticas são descentralizadas de diferentes maneiras, também pode enfraquecer as políticas de desenvolvimento regional (OCDE, 2019[14]).

A descentralização pode resultar na perda de certas economias de escala e na fragmentação das políticas públicas. Isto pode ocorrer especialmente se os governos subnacionais não forem capazes de cooperar entre si. A determinação do tamanho ideal da unidade subnacional é uma tarefa específica do contexto; varia não apenas por região ou país, mas também por área de política pública. Os governos nacionais têm um papel importante no estabelecimento de disposições legais, regulatórias e incentivos para fomentar a cooperação entre jurisdições, em particular dentro de regiões funcionais (OCDE, 2019[14]).

Esses desafios podem ter um impacto considerável na execução e relação custo-benefício das políticas públicas descentralizadas. Ao auditar o desempenho de políticas descentralizadas formuladas e prestadas através de diferentes níveis de governança, as EFSs podem aproveitar a oportunidade para considerar características do sistema de governança multinível que representam desafios para os níveis subnacionais de governo e reduzem sua capacidade de execução de políticas. O Capítulo 3 descreve como auditores podem elaborar e utilizar um referencial de governança multinível para e auditoria.

Obter uma imagem precisa da eficácia e eficiência das políticas descentralizadas pode ser especialmente desafiador em sistemas de auditoria externa descentralizados, devido a lacunas, sobreposição e duplicação nos mandatos dos órgãos de auditoria externa do sistema. Políticas descentralizadas são frequentemente políticas e serviços que afetam a população em seu dia-a-dia: educação, saúde, transporte, gestão de água, saneamento, etc. O baixo desempenho destas políticas tem repercussões imediatas para os cidadãos, assim um sistema de auditoria externa que funcione bem pode fazer uma diferença real e positiva na vida dos cidadãos.

Apesar de contarem com estruturas, funções e trabalho diferentes, EFSs e os órgãos regionais ou locais de auditoria externa têm por objetivo coletivo comum a promoção da responsabilidade e da boa governança (EUROSAI, 2020[13]). Em um contexto de descentralização, existem áreas compartilhadas de seu trabalho que oferecem oportunidades para uma coordenação e cooperação eficazes. Particularmente, as instituições de auditoria podem trabalhar em conjunto para auditar políticas prestadas através de mais de um nível de governo.

O objetivo é elaborar um quadro completo que forneça ao centro de governo os conhecimentos necessários para proporcionar o melhor resultado possível para os cidadãos. Cada entidade de auditoria externa possui uma peça do quebra-cabeça. A construção do quadro completo começa com a coleta e a montagem de todas as peças deste quebra-cabeça.

Construir um entendimento compartilhado entre as entidades de auditoria sobre os riscos da não entrega de resultados de políticas públicas pode ser um bom início para este esforço de colaboração. Após a elaboração de um mapa de risco compartilhado, as entidades de auditoria podem então trabalhar para uma seleção estratégica de auditorias, e assim ampliar o impacto de seu trabalho, coletiva e individualmente.

Ao melhorar a coordenação entre as instituições de auditoria externa através de uma abordagem comum baseada em risco para a seleção de auditorias (ver Quadro 1.5), as EFSs podem ajudar a enfrentar os desafios inerentes à descentralização, contribuindo, em última instância, para seu valor agregado. O Capítulo 2 descreve uma metodologia para a seleção de auditorias comuns através de uma avaliação de risco baseada em evidências.

Para aumentar a eficiência e o impacto coletivo do trabalho de auditoria, as auditorias realizadas por diferentes órgãos do sistema de auditoria externa devem ser estrategicamente alinhadas, na medida do possível, dadas as atribuições específicas e as obrigações legais de cada órgão de auditoria. Em vez de confiar na seleção de auditoria de cada entidade, os processos de seleção podem, idealmente, ser harmonizados sob uma direção estratégica coerente.

Além de reduzir a probabilidade de lacunas, sobreposição e duplicação do trabalho de auditoria – e aumentar o intercâmbio de conhecimentos – a coordenação entre instituições de auditoria externas também pode resultar em:

  • melhora e maximização da cobertura da auditoria, com um maior foco nas áreas de risco

  • auditorias mais bem informadas e, consequentemente, recomendações mais úteis em todos os níveis de governo

  • melhor compreensão de todas as partes sobre os resultados do trabalho umas das outras, o que pode ter um impacto em seus respectivos planos de trabalho e programas de auditoria futuros

  • auditorias mais eficientes, baseadas em planejamento e comunicação coordenados.

Para este fim, entidades de auditoria externa podem trabalhar no desenvolvimento de uma rede coordenada. O Capítulo 4 fornece orientações sobre como as instituições de auditoria externa podem elaborar e implementar tais redes.

Uma abordagem comum e coordenada baseada em risco para a seleção de auditorias é fundamental para superar os desafios da auditoria em um sistema de auditoria descentralizado. Esta é uma oportunidade para que as EFSs possam contribuir significativamente para melhorar o sistema de auditoria externa, não apenas conduzindo melhores auditorias, mas também assumindo o papel de liderança e apoiando melhorias estruturais do setor público, conforme exigido pelo Princípio 12 da INTOSAI sobre o Valor e os Benefícios das EFSs (INTOSAI, 2013[17]).

No Brasil, o tamanho e a complexidade do governo e a existência de múltiplos atores com poder de decisão nos três níveis de governo criam desafios para a manutenção da coerência e do desempenho efetivo das políticas públicas.

Conforme descrito anteriormente, o Brasil possui uma estrutura institucional e financeira altamente complexa e multinível. Esta arquitetura complexa, que pode apresentar desafios como lacunas, duplicação e sobreposição, pode dificultar o desempenho geral do sistema descentralizado. Além disso, o sistema de auditoria externa do país também é extremamente descentralizado, exacerbando os desafios para a execução descentralizada de políticas públicas. Dada tal "dupla descentralização", a colaboração por meio de uma seleção estratégica e do alinhamento de auditorias, incluindo a avaliação de questões de governança multinível, pode proporcionar uma solução para enfrentar os desafios.

O Brasil lida com grandes disparidades regionais. Quaisquer que sejam os indicadores socioeconômicos utilizados para avaliar esta disparidade, o padrão macrorregional é sempre o mesmo: as regiões norte e nordeste do país têm piores desempenhos, a região central tem resultados intermediários, e as regiões sul e sudeste têm os melhores desempenhos (Silva, 2017[18]). As principais políticas descentralizadas em educação, saúde e infraestrutura têm o objetivo de reduzir esta disparidade, mas a governança multinível altamente fragmentada representa um enorme desafio para a aplicação igualitária destas políticas e para a redução das desigualdades regionais.

Nas auditorias de desempenho dessas políticas, a perspectiva a partir do nível regional torna-se crucial. Ao selecionar auditorias em áreas de políticas descentralizadas, é fundamental ter-se uma visão da variação territorial das condições socioeconômicas e do desempenho dessas políticas. Sempre que disponíveis, as evidências em nível local podem fornecer essa percepção, quando coletadas e analisadas sistematicamente. Os TCs ocupam uma posição-chave para o fornecimento desta visão sobre as disparidades territoriais do desempenho das políticas públicas.

Esta é uma potencial força e oportunidade para o sistema descentralizado de auditoria externa no Brasil, desde que seja estabelecida forte colaboração estratégica entre os TCs. O Brasil pode se beneficiar a partir da elaboração de um mapeamento das políticas públicas e programas e de suas interações nos múltiplos níveis de governança. O TCU e os TCs podem desempenhar um papel importante na avaliação colaborativa do desempenho de políticas ou programas que são formuladas ou prestadas através de arranjos multiníveis.

Os próximos três capítulos deste relatório detalham estas áreas prioritárias e recomendações específicas para o Brasil.

  • O capítulo 2 se concentra na seleção de auditorias estratégicas através de uma avaliação de risco baseada em evidências.

  • O capítulo 3 descreve o desenvolvimento de um referencial que possa servir de base comum para avaliar os pontos altos e baixos sobre governança multinível durante uma auditoria.

  • O Capítulo 4 descreve estratégias e estruturas para garantir colaboração entre entidades de auditoria externa na seleção estratégica de auditorias.

Referências

[4] Allain-Dupré, D. (2018), “Assigning responsibilities across levels of government: Trends, challenges and guidelines for policy-makers”, OECD Working Papers on Fiscal Federalism, No. 24, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/f0944eae-en.

[11] Bovens, M. (2007), “Analysing and Assessing Accountability: A Conceptual Framework”, European Law Journal, Vol. 13/4, pp. 447-468, https://doi.org/10.1111/j.1468-0386.2007.00378.x.

[8] Diario Oficial da Uniao (2019), Decreto Nº 9.759, de 11 de Abril de 2019, http://www.in.gov.br/materia/-/asset_publisher/Kujrw0TZC2Mb/content/id/71137350/do1e-2019-04-11-decreto-n-9-759-de-11-de-abril-de-2019-71137335.

[13] EUROSAI (2020), “Taskforce Municipality Audit”, External Audit Systems Analysis, https://www.vkontrole.lt/tf/files/files/External%20Audit%20Systems%20Analysis_final_07-01(2).pdf (acesso em 20 de julho 2020).

[12] INTOSAI (2019), ISSAI 100- Fundamental principles of Public Sector Auditing, https://www.issai.org/pronouncements/issai-100-fundamental-principles-of-public-sector-auditing/.

[15] INTOSAI (2016), SAI Performance Measurement Framework 2016, https://www.idi.no/en/idi-cpd/sai-pmf.

[17] INTOSAI (2013), INTOSAI-P-12 The Value and Benefits of Supreme Audit Institutions – Making a difference to the lives of citizens, https://www.issai.org/pronouncements/intosai-p-12-the-value-and-benefits-of-supreme-audit-institutions-making-a-difference-to-the-lives-of-citizens/.

[16] INTOSAI (1977), The International Standards of Supreme Audit Institutions (ISSAI) 1. The Lima Declaration, https://www.issai.org/pronouncements/intosai-p-1-the-lima-declaration/.

[9] OCDE (2020), OECD Public Integrity Handbook, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/ac8ed8e8-en.

[2] OCDE (2019), Effective Public Investment Across Levels of Government – Principles for Action, OECD, https://www.oecd.org/effective-public-investment-toolkit/OECD_Public_Investment_Implementation_Brochure_2019.pdf.

[14] OCDE (2019), “Making decentralisation work: A handbook for policy-makers”, in Making Decentralisation Work: A Handbook for Policy-Makers, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/dd49116c-en.

[1] OCDE (2017), Multi-level Governance Reforms: Overview of OECD Country Experiences, OECD Multi-level Governance Studies, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264272866-en.

[6] OCDE (2013), Relatório Territorial da OCDE: Brasil 2013, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264189058-pt.

[7] OCDE/UCLG (2019), Report of the World Observatory on Subnational Government Finance and Investment – Country Profiles, OECD Publishing, Paris, http://www.sng-wofi.org/publications/SNGWOFI_2019_report_country_profiles.pdf (acesso em 15 de junho 2020).

[10] OCDE-SIGMA (2017), The Principles of Public Administration: 2017 edition, OCDE, Paris, http://www.sigmaweb.org/publications/Principles-of-Public-Administration-2017-edition-ENG.pdf.

[18] Silva, S. (2017), “Regional Inequalities in Brazil: Divergent Readings on Their Origin and Public Policy Design”, EchoGéo 41, https://doi.org/10.4000/echogeo.15060.

[5] Termeer, C., A. Dewulf and M. Lieshout (2010), “Disentangling Scale Approaches in Governance Research: Comparing Monocentric, Multilevel, and Adaptive Governance”, Ecology and Society, Vol. 15/4, https://doi.org/10.5751/es-03798-150429.

[3] World Bank (2020), Decentralization & Subnational Regional Economics, http://www1.worldbank.org/publicsector/decentralization/what.htm (acesso em 24 de julho 2020).

Metadata, Legal and Rights

Este documento e qualquer mapa aqui incluído foi elaborado sem prejuízo do status ou soberania de qualquer território, da delimitação de limites e fronteiras internacionais e do nome do território, cidade ou área. [missing text]

© OCDE 2020

O uso do conteúdo do presente trabalho, tanto em formato digital quanto impresso, é regido pelos termos e condições seguintes: http://www.oecd.org/termsandconditions.