Sumário executivo

A introdução do Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990 foi uma grande conquista para o Brasil, aumentando o acesso aos serviços de saúde e reduzindo as desigualdades em saúde. A implantação da Estratégia de Saúde da Família, iniciada em 1994 e voltada para a reorganização e fortalecimento da atenção primária à saúde, tem sido componente fundamental para esse sucesso. Desde a sua implantação, a população brasileira pôde se beneficiar do acesso gratuito aos serviços preventivos e de atenção básica prestados por equipes de saúde da família (eSFs) multidisciplinares. Nas últimas duas décadas, as reformas buscaram reequilibrar a prestação de serviços para se distanciar de um sistema de saúde que era historicamente muito centrado em hospitais. Notoriamente, elas têm se concentrado no desenvolvimento de modelos modernos de atenção, introduzindo gama de iniciativas e ferramentas de qualidade para monitorar as atividades e a qualidade do atendimento. A expansão da Estratégia Saúde da Família contribuiu para melhorias mensuráveis em termos de taxas de mortalidade infantil, saúde materna, vacinação e hospitalização evitável por doenças crônicas. A expectativa de vida ao nascer aumentou 5,7 anos, de 70,2 anos em 2000 para 75,9 anos em 2019. A taxa de mortalidade infantil diminuiu em 60%, de 30,3 mortes por 1.000 nascidos vivos em 2000 para 12,4 mortes por 1.000 nascidos vivos em 2019. A implementação da Estratégia Saúde da Família esteve associada à redução de 45% das taxas de internação por 10.000 habitantes entre 2001 e 2016, principalmente por condições sensíveis à atenção primária como asma, gastroenterite, doenças cardiovasculares e cerebrovasculares. O Brasil também prioriza os gastos com atenção primária à saúde. Em 2019, foram destinados cerca de 16% de recursos financeiros à atenção primária à saúde, semelhante aos países da OCDE.

Apesar desse progresso, os principais indicadores sugerem que a atenção primária à saúde no Brasil não está funcionando com tanta eficiência. O país enfrenta um duplo desafio com um sistema de atenção primária à saúde com desigualdades ainda marcantes no acesso e na qualidade da atenção, e com grave escassez de força de trabalho. A carga crescente de doenças crônicas não transmissíveis associada à expansão da exposição a fatores de risco e ao rápido envelhecimento da população agravará os desafios existentes. Nesse contexto, o presente Estudo identifica a margem para o Brasil construir um sistema de atenção primária à saúde mais forte e fortalecer as políticas e práticas existentes para aprimorar o acesso e a qualidade do atendimento. Ele oferece análise aprofundada de quatro áreas prioritárias: rastreamento e prevenção para as principais doenças crônicas não transmissíveis, qualidade da prestação de atenção primária à saúde, escassez de mão de obra e transformação digital da atenção primária à saúde no Brasil.

No Brasil, alguns tipos de câncer, hipertensão e diabetes possuem estratégias de rastreamento e prevenção; no entanto, há mais a ser feito para melhorar a profundidade e a abrangência dessas estratégias. O rastreio do câncer de mama e do colo de útero é oportunístico e não ocorre dentro de um programa baseado na população concebido e gerido a nível federal. Isso contribui para uma cobertura baixa e desigual de exames preventivos. Embora o rastreamento do câncer de mama entre o grupo-alvo de mulheres entre 50 e 69 anos de idade tenha aumentado de 15,2% para 24,2% entre 2014 e 2019, ele está abaixo de todos os países da OCDE e bem abaixo da média de 58% em 2019. Ao mesmo tempo, a mortalidade por câncer de mama e de colo do útero permanece alta e tem aumentado nas últimas décadas, sinalizando deficiências em termos de prevenção, detecção precoce e tratamento em estágios iniciais. Entre 2008 e 2019, a mortalidade por câncer de mama aumentou de 19,2 para 20,8 mortes por 100.000 mulheres no Brasil, em comparação com uma redução nos países da OCDE. O Brasil deve, portanto, implementar estratégia nacional forte para a prevenção e rastreio do câncer, principalmente mudando para programas de base populacional, com abordagem personalizada para convidar as populações-alvo. O aprimoramento dos sistemas de dados e a alfabetização em saúde são estratégias complementares que não devem ser subestimadas para estimular a major prevenção e rastreio do câncer. Quanto ao rastreamento de hipertensão e diabetes, o Brasil deve desenvolver ainda mais os itinerários terapêuticos com perspectiva centrada nas pessoas, integrando todos os profissionais de saúde em diferentes setores. As equipes de saúde da família precisarão ter as ferramentas, as capacidades e os incentivos adequados para assumir essas responsabilidades.

Também há deficiências evidentes quanto ao acesso à atenção primária à saúde de alta qualidade. De modo crítico, apenas 65% da população é atendida pelas eSFs e muitos pacientes ignoram os cuidados primários de saúde e procuram atendimento direto em especialidades ambulatoriais e hospitais. Isso fornece forte argumento para fortalecer os meios de controle no Brasil através de sistema de registro sistemático nas eSFs, o qual controlará e orientará o paciente para o atendimento especializado. Ao mesmo tempo, o governo federal precisará desempenhar papel mais prescritivo para fortalecer a integralidade da atenção primária à saúde de modo uniforme em todo o país. Para incorporar gama maior de atividades e intervenções eficazes nas ESFs, será fundamental garantir que todos os municípios sejam capazes de realizar ações e serviços de forma adequada. A introdução de incentivos econômicos, juntamente com programa educacional apropriado em prevenção, detecção e tratamento, são as principais abordagens a serem consideradas. Além disso, há várias oportunidades para ampliar ainda mais estratégias de qualidade para a atenção primária à saúde. É necessário dar atenção especial à transparência e à coleta de dados de desempenho mais abundantes. Um sistema de avaliação robusto que se aplicaria de modo uniforme em todo o país poderia ajudar a padronizar a qualidade da atenção primária à saúde e a identificar áreas que podem exigir maior suporte financeiro e organizacional. Por exemplo, a nova Agência para o Desenvolvimento da Atenção Primária à Saúde poderia atuar como uma inspetoria da atenção primária à saúde para fornecer verificação independente e externa de que os padrões estão sendo cumpridos, identificar boas práticas e dar suporte a centros mais deficientes para melhorar seus padrões.

Quando se trata de desafios para a força de trabalho, o setor de atenção primária do Brasil enfrenta aguda escassez e desequilíbrio na distribuição de médicos de atenção primária com um gradiente Norte-Sul, onde as regiões Norte e Nordeste apresentam densidade menor de médicos. Além disso, pouca atenção foi dedicada à criação de sólida credibilidade da especialidade de atenção primária à saúde e à promoção da qualidade da força de trabalho. Em 2018, apenas 5.486 médicos tinham formação na especialidade em medicina de família e comunidade, o que representa 1,4% do total de especialistas no Brasil. No futuro, o Brasil precisará implementar planejamento coerente da força de trabalho, o que atualmente não é realizado, com base na avaliação objetiva das necessidades presentes e futuras para gerir os recursos humanos de saúde. Paralelamente,, o Brasil poderia examinar as experiências dos países da OCDE para treinar mais médicos rurais e fornecer incentivos financeiros salariais e não salariais vinculados à obrigação de prestar serviços específicos em retorno. O Brasil deve tomar medidas para expandir o papel dos enfermeiros e dos agentes comunitários de saúde e explorar o potencial da delegação de tarefas. Do ponto de vista mais crítico, talvez haja oportunidades para tornar obrigatório o treinamento em especialidade de atenção primária à saúde a todos os médicos que desejam exercer a atenção primária à saúde e para implementar requisitos mais rígidos em torno da educação médica continuada.

O caráter descentralizado do governo brasileiro cria desafios para a digitalização da atenção primária à saúde. O Brasil deu passos largos em direção à transformação digital da atenção primária à saúde, com base em mais de uma década de políticas para digitalizar a atenção à saúde e fazer melhor uso dos dados de saúde, com investimentos importantes em redes, dados, interoperabilidade e habilidades. No entanto, o progresso em direção ao uso eficaz da atenção primária à saúde digital tem sido lento e fundamentalmente inconstante, com desigualdades significativas no uso de tecnologias e de ferramentas digitais entre os trabalhadores da saúde e os cidadãos. Em 2019, cerca de 78% das unidades de APS tinham sistemas de prontuário eletrônico do paciente (PEP). A adoção de sistemas de PEP foi maior nas regiões Sul e Sudeste (em 90% e 83% das instalações nessas regiões, respectivamente) em comparação com as regiões Nordeste e Norte (77% e 74%, respectivamente). Outras barreiras importantes incluem as capacidades humanas e técnicas nos municípios, com possíveis deseconomias de escala resultantes da definição de responsabilidades pela saúde digital no nível municipal. Enfrentar esses desafios requer a digitalização de todas as unidades e equipes de atenção primária à saúde, ao mesmo tempo que se promove a conectividade inclusiva para todos os cidadãos brasileiros, principalmente os mais vulneráveis. O Brasil também deve considerar o estabelecimento deestrutura de governança com mandatos claros e bem financiados nos níveis certos de governo.

Em todas essas áreas, há espaço para fortalecer a supervisão do governo federal, além da coordenação regional e do apoio dos governos estaduais. Mecanismos de coordenação melhores e mais sólidos entre níveis de governo têm o potencial de diminuir as desigualdades regionais e preparar o sistema de saúde contra choques sistêmicos, como o observado na pandemia de COVID-19. O Sistema Único de Saúde (SUS) tem grandes aspirações desde sua introdução pela Constituição Federal de 1988, fruto da mobilização de toda a sociedade. A atenção primária à saúde tem sido a pedra fundamental da ampliação da cobertura de saúde desde o início do SUS. A continuação do fortalecimento e da modernização da atenção primária à saúde ainda é a alavanca essencial para que o sistema de saúde brasileiro perceba seu potencial de alcançar efetivamente a cobertura universal de serviços de alta qualidade para todos os brasileiros.

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