7. Mérito

Uma administração pública selecionada e administrada com base no mérito, em oposição ao clientelismo político e ao nepotismo, apresenta muitos benefícios. Contratar pessoas com as habilidades adequadas para o trabalho geralmente melhora o desempenho e a produtividade, o que se traduz em melhores políticas públicas e melhores serviços que, por sua vez, tornam sociedades mais felizes, saudáveis e prósperas (Cortázar, Fuenzalida and Lafuente, 2016[1]). A meritocracia também demonstrou reduzir a corrupção (Dahlström, Lapuente and Teorell, 2011[2]; Meyer-Sahling and Mikkelsen, 2016[3]). A existência de sistemas meritocráticos reduz as oportunidades de clientelismo e nepotismo, bem como fornece as bases necessárias para desenvolver uma cultura de integridade.

Com efeito, o clientelismo, o nepotismo e o favorecimento de apoiadores podem ser formas de corrupção quando resultam na utilização de fundos públicos para enriquecer as pessoas com base nos seus laços familiares, filiação política ou posição ocupada pelo indivíduo na estrutura social. Em casos extremos, cargos públicos podem ser criados sem qualquer necessidade real de trabalho, com a mera intenção de fornecer uma fonte de renda para recompensar aliados políticos. Em outros casos, os cargos no setor público podem ser comprados e vendidos “por baixo da mesa”. Os sistemas baseados na meritocracia reduzem significativamente esses riscos, pois permite que os cargos sejam transparentes e exigem justificativas claras para sua existência. Primeiro, dificultam a criação de cargos “fantasmas” (cargos que não são necessários, onde as pessoas não realizam trabalhos essenciais) para recompensar amigos e aliados. Em segundo lugar, processos decisórios objetivos e transparentes dificultam a nomeação de pessoas que não possuem qualificação para ocupar os cargos. As pessoas ainda podem tomar medidas para influenciar injustamente o sistema, mas os mecanismos de contestação e as funções de supervisão garantem que as regras sejam aplicadas e que haja consequências para aqueles que tentam burlá-las.

Embora esses casos extremos de corrupção sejam raros nos países da OCDE, uma versão mais comum de nepotismo pode existir em alguns países membros quando gestores ou políticos nomeiam pessoas para cargos com base em seus laços pessoais. Embora esse tipo de nepotismo possa parecer menos crítico, ele ameaça os valores e a cultura do serviço público que as instituições do setor público se esforçam para promover. Isso ocorre porque a administração pública baseada no mérito é uma base essencial para desenvolver uma cultura de integridade. O mérito fornece os tipos adequados de incentivos e prestação de contas que sustentam, o espírito e o modo de ser do serviço público, o profissionalismo e os valores públicos.

Uma administração pública baseada no mérito contribui para reduzir a corrupção geral em todas as áreas do setor público. Há uma série de razões para isso (Charron et al., 2017[4]), incluindo:

  • Os sistemas meritocráticos trazem profissionais mais qualificados que podem ser menos tentados pela corrupção.

  • A meritocracia cria um espírito de corpo que recompensa o trabalho duro e as habilidades. Quando as pessoas são nomeadas por razões que nada têm a ver com mérito, podem ser menos propensas a ver o cargo em si como legítimo, mas sim como um meio de obter mais riqueza pessoal por meio de um comportamento de manipulação do ambiente para garantir seus interesses econômicos - prática conhecida como rent-seeking. Há também uma qualidade motivacional nos sistemas meritocráticos que reforça o serviço público.

  • Outra maneira pela qual a meritocracia demonstrou reduzir o risco de corrupção é oferecendo emprego de longo prazo. Isso tende a promover uma perspectiva de longo prazo que reforça o compromisso do funcionário com seu trabalho e torna menos tentador se envolver em oportunismo de curto prazo apresentado pela corrupção. Por outro lado, se as pessoas sabem que seu trabalho não durará muito, elas podem ser mais facilmente encorajadas a usar sua posição para ganho pessoal durante o pouco tempo que têm.

  • A separação de carreiras entre burocratas e políticos também se mostra como incentivo para que cada grupo monitore o outro e exponha os conflitos de interesse e os riscos de corrupção de cada um. Por outro lado, quando a burocracia é composta principalmente de indicados políticos, a lealdade ao partido no poder pode desencorajar a burocracia a denunciar a corrupção política (e os funcionários eleitos também podem estar mais dispostos a se envolver em atos corruptos dentro da burocracia).

No centro desta discussão está uma questão de lealdade e valores. Quando os princípios de mérito regem os processos de emprego, os servidores públicos seguirão a direção de seu governo, mas serão leais uns aos outros e aos seus valores compartilhados. Dessa forma, os sistemas meritocráticos e os valores comuns do setor público estão intrinsecamente ligados e fornecem um importante força de compensação ao poder político, que pode priorizar a popularidade para ganhar eleições e/ou busca de renda para benefício pessoal em vez de servir ao bem público.

A Recomendação da OCDE sobre Integridade Pública recomenda que os aderentes “promovam um setor público profissional, baseado no mérito, dedicado aos valores do serviço público e à boa governança, em particular por meio de:

  1. a. Assegurar uma gestão de recursos humanos que aplique consistentemente princípios básicos, como mérito e transparência, para apoiar o profissionalismo do serviço público, prevenir favoritismo e nepotismo, proteger contra interferências políticas indevidas e mitigar riscos de abuso de autoridade e má conduta;

  2. b. Assegurar um sistema justo e aberto de recrutamento, seleção e promoção, baseado em critérios objetivos e um procedimento formalizado, assim como um sistema de avaliação que apoie a prestação de contas e a ética do serviço público” (OECD, 2017[5]).

O princípio de mérito da Recomendação exige que os processos de contratação de pessoal sejam baseados na capacidade (talento, habilidades, experiência, competência) em vez de status ou conexões sociais e/ou políticas. Na governança, o mérito é geralmente apresentado em contraste com o clientelismo, o favorecimento de apoiadores ou o nepotismo, em que os empregos são distribuídos em troca de apoio ou com base em laços sociais.

Mas o que significa mérito na prática? Dependendo do país e do contexto, há uma ampla gama de ferramentas, mecanismos e salvaguardas que os países da OCDE utilizam para promover e proteger o princípio do mérito em suas administrações públicas. Por exemplo, a maioria dos países da OCDE publica todas as vagas, usa alguma forma de exames padronizados, bem como painéis de entrevistas estruturadas (Figura 7.1).

Independentemente das ferramentas específicas, todos os recursos a seguir são componentes essenciais das políticas meritocráticas:

  • Existem critérios adequados e predeterminados de qualificação e de desempenho e para todos os cargos.

  • Existem processos de gestão de pessoal objetivos e transparentes com base nos quais os candidatos são avaliados.

  • Existem processos de recrutamento abertos que garantem a oportunidade de avaliar todos os candidatos potencialmente qualificados.

  • Existem mecanismos de supervisão e recurso para garantir a implementação justa e consistente do sistema.

Para ter um sistema de administração pública baseado no mérito, uma estrutura organizacional transparente e lógica precisa identificar claramente os cargos e descrever o papel e o trabalho a ser desempenhado nesse cargo. Isso garante que a criação de novos cargos seja feita com a intenção correta, com base nas necessidades funcionais. Em sistemas onde o clientelismo e o nepotismo são de alto risco, é necessário deixar todo o organograma aberto ao escrutínio público. Em sistemas em que tais práticas são menos prevalecentes, geralmente são aplicados critérios claros para a criação de novos cargos e algum nível de supervisão – por exemplo, uma autoridade central de recursos humanos ou o ministério das finanças – para garantir que uma abordagem e padrões comuns sejam mantidos. A experiência da Estônia no desenvolvimento de famílias de empregos comuns apresenta um exemplo de integração bem-sucedida de uma estrutura de trabalho comum em organizações públicas que desenvolveram seus próprios sistemas (Quadro 7.1).

Uma vez que os cargos sejam claramente identificados e justificados, os critérios de seleção vinculados às tarefas específicas a serem desempenhadas ajudam a orientar um processo seletivo objetivo. Os critérios podem incluir categorias como capacidades, habilidades, competências, conhecimentos, experiência, especialização e educação específicas. Os sistemas meritocráticos tendem a buscar critérios específicos, objetivos e mensuráveis. Isso pode ser um desafio quando se trata de competências comportamentais e/ou cognitivas, que são mais difíceis de avaliar e classificar, mas que são cada vez mais vitais como preditores de sucesso, principalmente nos níveis gerenciais e de liderança. Vincular essas competências com as clássicas é um passo importante e a maioria dos governos da OCDE o faz por meio da descrição de perfis de cargos, que ajudam não apenas a descrever as tarefas, mas também a se concentrar nos resultados do trabalho e nas habilidades e competências necessárias para alcançá-los (Quadro 7.2).

Embora identificar os critérios corretos e medi-los adequadamente seja um desafio contínuo, mesmo para os empregadores públicos mais avançados (que será discutido mais adiante na Seção 7.3.2), o Quadro 7.3 dá o exemplo da avaliação do Serviço Público Australiano das qualidades relacionadas ao trabalho.

Os critérios de desempenho também são uma característica fundamental de um sistema meritocrático. Os critérios de desempenho ajudam a esclarecer o que se espera que a pessoa em exercício no cargo realize em um determinado período e como essas realizações serão avaliadas. Os critérios de desempenho reforçam a meritocracia de duas maneiras inter-relacionadas. Primeiramente, contribui para entender se o atual titular é ou não adequado para o cargo. O mérito não deve ser determinado apenas no processo de seleção, mas também reforçado e reavaliado em intervalos regulares. Mesmo os melhores processos de seleção podem cometer erros, e processos sólidos de avaliação de desempenho ajudam a protegê-los. Além disso, os perfis de cargos podem mudar com base em novas prioridades políticas ou demandas operacionais. Nesses casos, critérios de desempenho atualizados podem ser usados para reavaliar a pessoa no cargo para garantir que ela permaneça adequada.

A segunda maneira pela qual os critérios e a avaliação de desempenho contribuem para a meritocracia é avaliando o potencial futuro de um determinado funcionário. O registro de desempenho de um funcionário é uma informação importante sobre as competências e as habilidades do indivíduo e pode fornecer informações difíceis de se obter em processos de seleção de cargos. Desde que sejam conduzidas com base em critérios de desempenho bem definidos e objetivos para evitar seu uso arbitrário contra ou a favor de determinados membros da equipe, as avaliações de desempenho podem ser complemento valioso para informar os processos de seleção quando os funcionários se candidatam a um novo cargo ou oportunidade de promoção.

Muitas discussões sobre o emprego público baseado no mérito enfatizam o processo de ingresso no serviço público ou nas instituições públicas, pois esta é geralmente a primeira linha de defesa contra o nepotismo e o clientelismo. Essa é a lógica por trás, por exemplo, dos concursos organizados na Espanha ou na França para ingressar no serviço público. Na Espanha, os candidatos passam por um processo de recrutamento competitivo, que garante os princípios de objetividade, neutralidade, mérito, capacidade, publicidade e transparência, bem como o profissionalismo e a neutralidade do órgão colegial de seleção. Existem também mecanismos de recurso administrativo e judicial em todas as fases do processo. No entanto, em um serviço público baseado no mérito, o princípio do mérito se aplica a todos os sistemas de tomada de decisão de pessoal, incluindo a gestão de desempenho; todos os processos de nomeação sejam internos (promoções/mobilidade lateral) ou externos (contratações); oportunidades de treinamento e desenvolvimento; sistemas de remuneração; disciplina; e demissão.

Em geral, os seguintes princípios devem ser aplicados a todos esses processos:

  • Transparência – Na maioria dos sistemas meritocráticos, as decisões de recursos humanos são tomadas abertamente, para limitar o tratamento preferencial concedido a pessoas ou grupos específicos. As decisões são geralmente documentadas de forma que os principais interessados, incluindo outros candidatos, possam seguir e entender a lógica factual por trás da decisão. Isso lhes permite contestar uma decisão que parece injusta. Ferramentas e práticas podem incluir sistemas on-line que são cada vez mais usados para rastrear processos de recursos humanos e publicar os resultados.

  • Objetividade – As decisões devem ser tomadas com base em critérios objetivos predeterminados (consulte a Seção 7.2.1 acima) e mensuradas usando ferramentas e testes apropriados que sejam aceitos como eficazes e de ponta pela profissão de recursos humanos. As ferramentas e práticas podem incluir currículos padronizados ou anônimos, testes padronizados, centros de avaliação, entrevistas em painel, testes de competência, testes de personalidade, testes de julgamento situacional e outros métodos destinados a informar o processo. Em todos os casos, o mais adequado a se fazer, é selecionar os testes a partir de consultas a psicólogos e usá-los do como uma entrada entre muitas outras.

  • Consenso – As decisões devem ser baseadas em mais de uma opinião e/ou ponto de vista. Várias pessoas devem ser envolvidas e esforços devem ser feitos para buscar um equilíbrio de perspectivas, particularmente no que diz respeito a processos menos padronizados e abertos a interpretações subjetivas, como entrevistas ou exames escritos (ensaios). Isso pode ajudar a melhorar a objetividade e limitar o favoritismo baseado em relacionamentos pessoais (por exemplo, promover alguém porque é apreciado por seu gestor) e também pode ajudar a lidar com preconceitos inconscientes. Ferramentas e práticas podem incluir o uso de entrevistas em painel, com um equilíbrio de gênero, idade e experiência. O uso de feedback de 360 graus – que dá ao funcionário a oportunidade de receber feedback de desempenho de subordinados, de colegas e de supervisores, geralmente incluindo uma autoavaliação – também pode ajudar a trazer múltiplas perspectivas para a tomada de decisões de recursos humanos.

Nos sistemas meritocráticos, esses princípios se aplicam igualmente à demissão. Um alto nível de segurança no emprego tem sido uma característica comum dos sistemas de emprego público em muitos países e foi geralmente estabelecido para proteger os funcionários públicos de demissões por motivos políticos, garantir seu direito de fornecer aconselhamento político franco e destemido e permitir que “falem a verdade” ao poder”. Hoje, muitas características da gestão de pessoal do serviço público estão sendo repensadas no contexto de um mercado de trabalho moderno e as proteções trabalhistas são debatidas na arena política em muitos países. Para os propósitos de um sistema baseado na meritocracia, a proteção contra demissões por motivos políticos é essencial. No entanto, a demissão em caso de desempenho significativamente insatisfatório também faz parte do sistema na maioria dos países da OCDE, embora raramente seja aplicada, exceto em casos de má conduta grave. O desafio está em definir cuidadosamente a linha entre desempenho e política, bem como proteger contra possíveis abusos. Isso sugere a necessidade de gerenciar ativamente o desempenho.

O Quadro 7.4 discute como os processos de gestão de pessoal na administração Pública polonesa são geridos entre o chefe do serviço público e os diretores-gerais de cada órgão público do governo.

Um terceiro componente fundamental do mérito é o princípio do acesso aberto e equitativo. Isso é fundamental, pois ajuda a garantir que a melhor pessoa para o trabalho possa se apresentar e ser considerada, independentemente de sua localização, características demográficas, status social ou afiliação política. Para isso, as administrações públicas baseadas no mérito nos países da OCDE se esforçam para garantir que as vagas de emprego e informações relevantes sejam anunciadas e comunicadas, que os locais de acesso para testes e entrevistas sejam geograficamente dispersos e que todos os esforços razoáveis sejam feitos para facilitar a participação de grupos que possam estar em desvantagem, como as pessoas com deficiência. Na Espanha, por exemplo, disposições específicas visam promover a diversidade no recrutamento de funcionários públicos, incluindo pessoas com deficiência, por meio de medidas específicas, como cotas. Estas medidas visam eliminar os obstáculos discriminatórios, desde que os candidatos tenham sido aprovados nos processos de seleção e demonstrem o mesmo nível de competências e conhecimentos dos outros candidatos. Um sistema que limita a consideração a segmentos específicos da sociedade não pode ser considerado totalmente meritocrático, independentemente dos critérios de avaliação e das ferramentas utilizadas.

Este princípio exige uma verdadeira reflexão sobre a forma como os critérios de seleção são escolhidos e avaliados. Por exemplo, os critérios educacionais beneficiam graduados de certas escolas conhecidas por serem frequentadas principalmente por uma classe de elite? Tais critérios podem perpetuar a noção de classe dominante, o que é contrário ao princípio básico do mérito. De fato, vincular o mérito aos critérios educacionais requer uma consideração cuidadosa sobre se/como o princípio do mérito é aplicado no sistema educacional. Em alguns países, o acesso à educação é determinado mais pelos meios do que pelo mérito, o que por extensão pode resultar em um serviço público elitista. Para resolver isso, alguns países, como a Bélgica, permitem que os critérios educacionais sejam substituídos por critérios experimentais quando um caso claro pode ser feito.

Alguns países da OCDE analisam os critérios de seleção e os processos de recrutamento em termos de fatores demográficos para avaliar se encorajam candidaturas de mulheres ou grupos minoritários. O Reino Unido realizou uma análise completa dos candidatos aos programas Fast Stream e descobriu que o grupo de candidatos não possui alguns aspectos fundamentais da representação (Quadro 7.5). Se um número surpreendentemente baixo de inscrições for recebido de certos grupos, estudos adicionais podem ser realizados para entender por que eles não estão se candidatando e para lidar com as barreiras. Às vezes, a barreira é a percepção – em algumas sociedades, certos grupos não percebem o serviço público como um lugar onde seriam bem-vindos para trabalhar. Isso pode ser um sinal poderoso quanto ao nível de mérito, real ou percebido, no sistema.

Quando aplicado a processos internos de recursos humanos, este princípio deve ser ajustado às circunstâncias particulares do sistema de administração pública em questão. Nem todas as vagas precisam ser preenchidas por meio de concursos abertos a candidatos externos. A Figura 7.2 sugere que apenas uma minoria de países da OCDE abre todo o recrutamento a concursos externos. No entanto, deve haver critérios e raciocínios claros e transparentes por trás do uso de concursos internos versus externos. Além disso, os concursos internos ainda devem ser abertos a todos os candidatos internos qualificados.

Como acontece com qualquer sistema baseado em regras, há necessidade de instituições e processos para garantir uma aplicação consistente e justa. Isso é particularmente importante quando a responsabilidade pela gestão de recursos humanos é altamente descentralizada – como é o caso na maioria dos países da OCDE, onde os gestores individuais têm um alto grau de influência na contratação, avaliação de desempenho e promoção. Com tantas pessoas envolvidas, o risco é alto de aplicação irregular, bem como de interpretações pessoais das regras e princípios que resultam em aplicação desigual ou mesmo em desacordo sobre o que as regras e princípios significam. A maioria dos países aborda essas questões por meio de três mecanismos inter-relacionados.

O primeiro consiste em atribuir autoridade para a supervisão e proteção do sistema de mérito a um órgão independente com poderes de investigação e autoridade para intervir em processos de recursos humanos quando considere que foram cometidas violações ou que são iminentes. Na maioria dos casos, o principal papel do órgão é salvaguardar o processo e fazer correções no sistema quando necessário (Quadro 7.6). Por exemplo, essas autoridades podem monitorar se os anúncios de emprego cumprem os requisitos legais, regulamentos e princípios éticos, bem como monitorar a transparência do processo de recrutamento. Em alguns países, as autoridades também realizam testes e procedimentos de seleção em nome de organizações individuais.

O segundo é ter mecanismos de recurso disponíveis para os candidatos que sentem que foram tratados de forma injusta. Fornecer aos candidatos acesso ao seu arquivo e registros pessoais é essencial. Os meios de recurso devem ser divulgados aos candidatos e os mecanismos devem ser acessíveis e dotados de recursos adequados para garantir a capacidade de resposta.

O terceiro é garantir que todos os gestores tenham uma compreensão clara e consistente do sistema e sua discrição dentro dele. Isso geralmente é alcançado por meio de uma combinação de fornecimento de informações, treinamento obrigatório e regular, bem como serviços de consultoria.

Embora os sistemas meritocráticos tenham sido um princípio constante na gestão da administração pública nos governos da OCDE, a aplicação do sistema precisa ser renovada para acompanhar as mudanças nas demandas dos serviços públicos. À luz dessas necessidades e expectativas em constante mudança, os sistemas meritocráticos existentes estão sendo reformulados de várias maneiras.

No centro das tensões do sistema de mérito está a percepção de que as meritocracias são menos responsivas aos desejos dos políticos eleitos para representar seus eleitores. Pode se argumentar que os processos de recrutamento e contratação de pessoal seriam mais adaptáveis e mais rápidos para responder a novos desafios em um tipo de sistema do setor privado que não impõe os mesmos padrões ou freios e contrapesos com base no mérito. Nesses sistemas, a transparência e a justiça são trocadas por conveniência. Se isso é verdade ou não e quais são os trade-offs de longo prazo em termos de valor público e princípios democráticos, exigem debate público e análises que vão além das visões de curto prazo do ciclo político. A maioria dos sistemas tem alguma flexibilidade e usa exceções às regras de mérito com moderação, para garantir que permaneçam como exceções à regra e não se tornem a regra.

O que está claro é que, se os sistemas baseados no mérito não forem atualizados para atender às necessidades de um governo do século vinte um, eles criarão incentivos para que os gestores resistam à natureza meritocrática do sistema e encontrem maneiras de cortar custos.

Um aspecto central para este debate é a velocidade de muitos sistemas meritocráticos, que muitas vezes podem ser lentos devido às várias etapas exigidas na avaliação de candidatos e a necessidade de garantir que os candidatos tenham ampla oportunidade de contestar uma decisão que consideram inadequada. Do ponto de vista gerencial, demandas operacionais não atendidas por um sistema de mérito lento podem criar incentivos à busca de outros tipos de mecanismos de contratação, como contratação temporária ou promoção de pessoas em caráter temporário, o que pode prejudicar o sistema de mérito.

Um sistema do setor público baseado no mérito, que valoriza a abertura e a transparência, pode sempre ser um pouco mais lento do que os sistemas alternativos que permitem pular várias etapas do processo. No entanto, muitos países poderiam acelerar seus processos de contratação de pessoal fazendo melhor uso das tecnologias digitais e investindo nas habilidades e capacidades dos gestores de recursos humanos para conduzir abordagens mais estratégicas de contratação de pessoal. Para auxiliar recrutadores e gestores, a Comissão de Administração Pública da Austrália desenvolveu orientações para aumentar a conformidade dos processos internos de recursos humanos com a estrutura legal e facilitar a tomada de decisões sem desacelerar o sistema (Australian Public Service Commission, 2018[10]).

Vários países, como o Canadá, desenvolveram sistemas de agrupamento que também podem ajudar a acelerar o processo do ponto de vista gerencial. Nesse sistema, os candidatos se pré-qualificam para certos tipos de cargos e os gestores de contratação podem ir a esse “banco” de candidatos para encontrar um perfil adequado sem ter que executar um processo inteiro desde o início. No entanto, do ponto de vista de um candidato, o processo pode ser demorado e bons candidatos já podem ter encontrado trabalho em outro lugar. Os bancos de habilidades também são desenvolvidos internamente para oferecer um recurso intergovernamental. O programa de agentes livres no Canadá cria um grupo de funcionários públicos internos com habilidades de inovação e os atribui a projetos de curto prazo em vários departamentos para ajudar a atender às necessidades especializadas.

Um segundo fator que sobrecarrega os sistemas tradicionais de mérito são os tipos de habilidades e critérios que estão sendo avaliados. Por um lado, os conjuntos de habilidades do setor público estão se tornando cada vez mais especializados e técnicos (por exemplo, para detectar corrupção), sugerindo que a abordagem tradicional de um exame padronizado pode ser menos relevante.

Por outro lado, os empregadores públicos estão cada vez mais usando competências comportamentais e cognitivas (por exemplo, trabalho em equipe, pensamento estratégico e habilidades de gestão) e valores (por exemplo, integridade) como critérios de seleção para cargos. Os desafios de usar sistemas meritocráticos para detectar integridade e excluir pessoas cujos valores não se alinham são significativos, por vários motivos:

  • São menos os traços de caráter das pessoas e mais o contexto em que se encontram que contribui para sua decisão de se envolver em corrupção ou comportamento antiético;

  • As poucas pessoas que podem abordar um trabalho com a intenção específica de realizar atividades antiéticas provavelmente estão dispostas a trapacear e burlar o sistema de detecção para atingir seus objetivos;

  • Não há consenso sobre os benefícios ou a confiabilidade dos testes de integridade usados para pré-seleção de candidatos principalmente no setor privado.

Esta situação exige um novo conjunto de ferramentas de avaliação e conhecimentos. Sem investir em tal expertise, a avaliação desses tipos de fatores está aberta a interpretações subjetivas e vieses inconscientes, que podem ameaçar a validade do processo de mérito e abrir a porta para o nepotismo. A conclusão é que a capacidade da abordagem meritocrática tradicional para selecionar os melhores candidatos (ou seja, educação, experiência e exames padronizados) pode não ser mais adequada às necessidades de uma organização de serviço público moderna.

Diante desses desafios, alguns governos podem testar especificamente a conscientização e o conhecimento de procedimentos éticos, bem como usar exames de julgamento situacional para obter uma visão da capacidade de julgamento dos candidatos.

Avaliações baseadas em valores também podem fornecer informações sobre a adequação de valores, o que pode ser um importante indicador de desempenho futuro. Geralmente, o primeiro passo é uma organização esclarecer quais valores constituem uma parte essencial de seu trabalho. Isso deve ir além de simplesmente listar palavras-chave como “integridade” e “responsabilidade”, mas também incluir uma descrição de quais comportamentos ilustram esses valores em um contexto de trabalho. Os comportamentos passam então a fazer parte dos critérios de avaliação juntamente com as competências, experiência e aptidão.

Testar esses comportamentos não é simples e requer algum grau de especialização. Ele pode ser usado no contexto de entrevistas, por exemplo; algumas organizações podem pedir aos candidatos que discutam sobre seus próprios valores diretamente. No entanto, uma maneira melhor é muitas vezes conhecer estes valores indiretamente – perguntando, por exemplo, sobre um momento em que o funcionário foi forçado a tomar uma decisão ética no trabalho ou sobre um momento em que sentiu que havia um conflito de valores e, em seguida, comparar com os comportamentos identificados anteriormente. Melhor ainda é fazer com que os candidatos demonstrem seus valores por meio de metodologias de centros de avaliação, como encenações, simulações e exercícios em grupo. Por fim, a gamificação é cada vez mais usada como forma de avaliar comportamentos e valores em um ambiente mais natural, mas essas abordagens exigem controles cuidadosos implementados por especialistas na área de psicologia para garantir confiabilidade e validade.

Dois valores que orientam cada vez mais o emprego e a gestão pública são os da representatividade e da inclusão. A diversidade da força de trabalho em um ambiente inclusivo pode melhorar a formulação de políticas públicas e a inovação na prestação de serviços. Ter uma variedade de funcionários com diferentes origens que veem as coisas de diferentes perspectivas também pode contribuir para uma cultura no local de trabalho em que os funcionários estão abertos a questionar suposições e identificar riscos de integridade. A Comissão de Serviço Público Australiano desenvolveu material de orientação destinado a aumentar a diversidade e inclusão na força de trabalho do Serviço Público Australiano, incluindo, por exemplo, orientações sobre a concepção de medidas afirmativas para o recrutamento de povos indígenas ou pessoas com deficiência (Australian Public Service Commission, 2018[10]).

Nos países da OCDE, os níveis superiores das hierarquias burocráticas são menos diversos e menos representativos da população em geral do que a força de trabalho do setor público em geral. Isso sugere que os sistemas de mérito que selecionam e promovem pessoas para cargos de alto nível podem ser tendenciosos para determinados perfis e podem ser revistos com isso em mente.

O viés pode estar incorporado ao sistema e/ou pode ser parte do viés pessoal (inconsciente) dos tomadores de decisão. Os vieses que podem estar incorporados ao sistema podem incluir critérios que excluem desnecessariamente certas populações, como a preferência por determinada área de formação e nível educacional que só é acessível às populações de classe alta ou a localização de instalações de recrutamento nas capitais. Os programas de mentoria também podem ajudar a resolver os desequilíbrios no desenvolvimento das conexões sociais, que muitas vezes desempenham um papel de promoção, assim como políticas fortes que visam equilibrar o trabalho e a vida familiar.

O viés inconsciente dos tomadores de decisão pode ser abordado e gerenciado, começando com o treinamento obrigatório de conscientização para todos os gestores. Os gestores precisam entender seus preconceitos não apenas na contratação, mas também na gestão de desempenho (que tem um impacto significativo na promoção) e na atribuição de tarefas (por exemplo, as mulheres podem ter menos oportunidades de trabalhar em projetos exigentes e de alto nível porque se supõe que priorizará a vida familiar). Tomar esses tipos de decisões de pessoal em consulta com outros gestores, superiores ou até mesmo outros membros da equipe podem ser uma forma de desafiar os preconceitos pessoais dos gestores (Evans et al., 2014[11]).

Quando muitos dos sistemas de administração pública foram estabelecidos, o emprego público era entendido como único e separado do emprego privado e, portanto, justificativa seu próprio sistema e estrutura legal. Os sistemas de administração pública atuais tendem a ser muito mais fragmentados, com os servidores públicos cada vez mais trabalhando ao lado de empreiteiros privados e/ou pessoas com contratos temporários que podem não estar sujeitos aos mesmos princípios e proteções meritocráticas. Além disso, um número crescente de serviços públicos é prestado em nome do governo por meio de terceiros contratados e organizações sem fins lucrativos/do terceiro setor. Em geral, não se aplicam as regras tradicionais de mérito do serviço público isso levanta questões importantes sobre o estado atual e futuro dos sistemas meritocráticos. Por exemplo, no serviço voltado para o cidadão, as organizações terceirizadas de prestação de serviços estão sujeitas a um conjunto mínimo de padrões de mérito, independentemente de serem do setor público ou não? Ou sua distância da interface política remove a ameaça mais imediata de interferência política, da qual a meritocracia foi desenhada para proteger? Dada a quantidade de dinheiro público que muitas dessas organizações administram, alguns sugerem que elas deveriam estar sujeitas a algum tipo de medida de capacidade mínima. Por exemplo, a Comissão Europeia desenvolveu um quadro de competências que pode ser aplicado às autoridades de gestão que receber fundos estruturais da UE (European Commission, n.d.[12]); a estrutura pode orientar seus processos de mérito e ajudar a identificar pontos fortes e lacunas.

Uma questão relacionada é se todos os funcionários públicos devem estar sujeitos aos mesmos critérios de mérito, independentemente de sua situação de emprego (por exemplo, funcionários públicos, funcionários temporários, etc.). Isso provavelmente dependeria de os funcionários públicos realizarem o mesmo trabalho que outros funcionários públicos. O nível de meritocracia provavelmente seria determinado por um tipo de avaliação de risco com base nas qualidades do trabalho e não no mecanismo legal específico de contratação em vigor.

Referências

[10] Australian Public Service Commission (2018), Recruitment: Guidelines, https://www.apsc.gov.au/recruitment-guidelines (accessed on 24 September 2019).

[4] Charron, N. et al. (2017), “Careers, Connections, and Corruption Risks: Investigating the Impact of Bureaucratic Meritocracy on Public Procurement Processes”, The Journal of Politics, Vol. 79/1, pp. 89-104, https://doi.org/10.1086/687209.

[1] Cortázar, J., J. Fuenzalida and M. Lafuente (2016), Sistemas de mérito para la selección de directivos públicos: ¿Mejor desempeño del Estado?: Un estudio exploratorio, Inter-American Development Bank, https://doi.org/10.18235/0000323.

[2] Dahlström, C., V. Lapuente and J. Teorell (2011), “The merit of meritocratization: Politics, bureaucracy, and the institutional deterrents of corruption”, Political Research Quarterly, Vol. 65/3, pp. 656-668, https://doi.org/10.1177/1065912911408109.

[12] European Commission (n.d.), EU Competency Framework for Management and Implementation of the ERDF and Cohesion Fund, https://ec.europa.eu/regional_policy/en/policy/how/improving-investment/competency/ (accessed on 11 October 2019).

[11] Evans, M. et al. (2014), “‘Not yet 50/50’ - Barriers to the Progress of Senior Women in the Australian Public Service”, Australian Journal of Public Administration, Vol. 73/4, pp. 501-510, https://doi.org/10.1111/1467-8500.12100.

[3] Meyer-Sahling, J. and K. Mikkelsen (2016), “Civil Service Laws, Merit, Politicization, and Corruption: The Perspective of Public Officials from Five East European Countries”, Public Administration, Vol. 94/4, pp. 1105-1123, https://doi.org/10.1111/padm.12276.

[5] OECD (2017), OECD Recommendation of the Council on Public Integrity, OECD, Paris, https://legalinstruments.oecd.org/en/instruments/OECD-LEGAL-0435 (accessed on 24 January 2020).

[8] OECD (2017), Skills for a High Performing Civil Service, OECD Public Governance Reviews, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/9789264280724-en.

[6] OECD (2016), Survey on Strategic Human Resources Management in Central / Federal Governments of OECD Countries, https://qdd.oecd.org/subject.aspx?Subject=GOV_SHRM.

[7] OECD (2011), Public Servants as Partners for Growth: Toward a Stronger, Leaner and More Equitable Workforce, OECD Publishing, Paris, https://doi.org/10.1787/9789264166707-en.

[9] The Bridge Group (2016), Socio-Economic Diversity in the Fast Stream, https://assets.publishing.service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/file/497341/BG_REPORT_FINAL_PUBLISH_TO_RM__1_.pdf (accessed on 11 October 2019).

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