3. Tornar a regulação da água e do saneamento eficaz no Brasil

A nova Lei do Saneamento (Lei 14.206, de 15 de julho de 2020) baliza a reforma do marco regulatório de água e saneamento no Brasil e expande o papel da ANA, que passa de gestora de recursos hídricos para definidora de normas de referência para saneamento básico1 e supervisora da aplicação dessas normas por parte das instituições infranacionais (Figura 3.1). A nova estrutura fornece mais oportunidades para privatização e investimentos privados, com vistas a desenvolver a infraestrutura e a expandir os serviços de saneamento em todo o país (universalização). Trata-se de uma mudança importante para o setor, uma vez que, no quadro legal anterior, os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário eram regulados localmente, sem orientação ou supervisão federal, o que resultou em regras dispersas, desarmonizadas e desequilibradas, gerando ineficiências e riscos regulatórios. Espera-se que a nova Lei de Saneamento crie ambiente regulatório mais estável.

O principal resultado almejado pelo novo marco legal do saneamento é a universalização dos serviços, com o objetivo de abastecimento de água potável a 99% da população e de coleta e tratamento de esgotos a 90% da população até ao final de 20332. Diversos meios são descritos na nova Lei de Saneamento para alcançar o objetivo máximo, principalmente a harmonização de abordagens e normas para autoridades infranacionais, por meio da adoção de normas de referência emitidas pela ANA, capacitação das autoridades infranacionais, regionalização e melhoria no acesso do setor privado.

A ANA foi colocada no centro da reforma, tornando-se a reguladora nacional dos serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Em particular, a ANA foi incumbida de formular as normas de referência a serem seguidas de maneira voluntária pelas autoridades infranacionais e de orientar as agências reguladoras locais e os prestadores de serviços (com elaboração de estudos técnicos, guias e manuais, bem como capacitação de recursos humanos) (Figura 3.1 e Tabela 3.1).

O sucesso do lançamento do novo marco legal tem o potencial de apresentar desafios para os diversos atores envolvidos. Em primeiro lugar, o Brasil é um país de dimensões continentais, com realidades diversas: desigualdades sociais, diferenças geográficas e culturais entre as regiões e baixa capacidade de pagamento por serviços. Todas essas características foram intensificadas pela crise do COVID-19, bem como pela capacidade desigual em nível estadual. O processo de harmonização da regulação com o objetivo de atingir a universalização do acesso aos WSS para os cidadãos brasileiros requer engajamento e flexibilidade de todos os atores envolvidos. De acordo com os dados do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), em 2018, somente 83.6% da população teve acesso à água (93%, em áreas urbanas) e 53.2% da população teve acesso a serviços de esgotamento sanitário (61%, em áreas urbanas) (Figura 3.2) (SNIS, 2018[3]).

Em segundo lugar, o setor de recursos hídricos é caracterizado por ser altamente sensível e dependente da governança multinível (OECD, 2015[4]). Tais características são mais exacerbadas num contexto de federalismo descentralizado em WSS, como no Brasil. Além disso, há um elevado número de agências reguladoras infranacionais de WSS: um total de 72, incluindo 34 municipais, 13 intermunicipais e 25 agências reguladoras estaduais. Portanto, há necessidade de coordenação entre a ANA, os reguladores infranacionais, os governos municipais/locais e o governo federal.

Em terceiro lugar, quando o escopo das responsabilidades da ANA foi ampliado, especialmente no que diz respeito à harmonização (por meio da edição de normas de referência aplicáveis a todas as autoridades infranacionais, assim como da função de supervisão regulatória na implementação das normas), deficiências em seu mandato foram percebidas, especialmente com relação a não-obrigatoriedade da aplicação das normas.

De acordo com as práticas internacionais e os quadros normativos da OCDE, algumas dimensões-chave devem ser consideradas pela ANA para o sucesso da nova estrutura e do marco legal. As propostas são descritas abaixo.

A reforma do setor de recursos hídricos e saneamento do Brasil é um empreendimento ambicioso e seu sucesso depende do esforço colaborativo e da coordenação eficaz entre todos os atores. O novo marco regulatório, definido na Lei de Saneamento, prevê metas de longo prazo (ou seja, dezembro de 2033 para a consecução da universalização dos WSS).

Ao mesmo tempo, o marco legal precisa do envolvimento de um elevado número de atores para ser bem-sucedido. Como esboçado na Tabela 3.2, a matriz de relações atual do setor é complexo, mesmo quando se desconsidera consumidores atuais e futuros, ou investidores. Autoridades municipais, regionais e do estado são responsáveis pela prestação dos serviços e do desenvolvimento da regulação local; às autoridades federais cabe a regulação nacional, bem como o planejamento e o financiamento da infraestrutura hídrica.

O regulador da Austrália do Sul, a Comissão de Serviços Essenciais da Austrália do Sul (ESCOSA), estava em posição semelhante à da ANA ao receber responsabilidades adicionais como consequência da reforma regulatória ocorrida no país. Da mesma forma que a ANA, a ESCOSA operava em um sistema federal (porém sem supervisão federal) e sofria o impacto de diferentes níveis de governança. A fim de obter clareza de papéis e definir responsabilidades para todos os atores envolvidos na nova composição regulatória, a ESCOSA e os outros atores do setor criaram uma série de pactos de alto nível ("acordos de relacionamento"). Por meio desses pactos, os atores relevantes compreenderam os objetivos de curto e longo prazos impulsionados pela reforma e foram capazes de agir em sincronia com vistas a alcançar os objetivos da nova política (ESCOSA, 2020[6]). Além disso, tais pactos de alto nível podem tornar-se ferramenta operacional útil e, se necessário, podem ser consultados se o diálogo ou a cooperação entre os atores “sair dos trilhos”.

Um regulador eficaz deve ter objetivos definidos, com funções e mecanismos claros e interligados para coordenar-se com outras instituições relevantes e alcançar os resultados regulatórios desejados. Os Princípios de Melhores Práticas para a Governança dos Reguladores da OCDE descreve como os reguladores podem ter uma missão bem definida e responsabilidades distintas dentro de esquemas regulatórios. Como afirma a OCDE (2014[7]):

A menos que os objetivos sejam especificados, o regulador pode não ter elementos suficientes para estabelecer prioridades, processos e limites para seu trabalho. Além disso, objetivos claros são necessários para que outros possam responsabilizar o regulador por seu desempenho.

A estrutura estratégica (visão, missão e objetivos estratégicos) do regulador oferece oportunidade para a definição e a comunicação dos papéis, das responsabilidades e das expectativas. Tais exercícios facilitam o engajamento das partes interessadas na discussão sobre a direção estratégica do regulador, ao mesmo tempo em que se considera uma boa prática que os reguladores econômicos tenham independência na definição de suas estratégias de longo prazo. Dados da OCDE mostram que, no setor de recursos hídricos, 70% dos reguladores receberam contribuições do governo no processo de definição de suas estratégias (OECD, 2018[8]). Essa colaboração é especialmente relevante no contexto brasileiro atual, com a introdução de uma reforma tão significativa para os serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. O quadro estratégico final terá de ser comunicado às partes interessadas de forma transparente, possivelmente por meio de uma estratégia de comunicação que pode ser um site atualizado da ANA e o monitoramento efetivo dos objetivos estratégicos.

No caso da ANA, o regulador também deve administrar funções potencialmente conflitantes de gestão de recursos hídricos e de regulação econômica dos WSS (ou seja, o desempenho de uma função poderia, potencialmente, limitar ou comprometer a capacidade do regulador de cumprir sua outra função). Tais arranjos, em que um regulador trabalha com diferentes áreas de interesse público, requerem boas práticas regulatórias. Consequentemente, dispor de acordos institucionais que assegurem a transparência na tomada de decisão e a responsabilização pelas decisões são cruciais. A ESCOSA passou por inúmeras mudanças em suas atribuições na última década. A experiência da ESCOSA sugere que objetivos regulatórios claros, acompanhados de robusta governança interna, bem como de foco na criação de valores e cultura internos, rendem benefícios no longo prazo.

Assim como o Brasil, a União Europeia (UE) dispõe de vasto território formado por 27 Estados-membros, com geografia, prioridades socioeconômicas e necessidades de consumo muito diversificadas. Não obstante, a UE logrou introduzir uma estrutura comum para regular a qualidade dos recursos hídricos para todos os seus membros, tendo em conta as especificidades regionais. Isto foi alcançado por meio de diferentes instrumentos legislativos (diretivas e regulamentos), que estabelecem princípios comuns (por exemplo: recuperação de custos, ou a obrigação de os poluidores pagarem pelos danos ambientais gerados) e objetivos específicos (como normas de qualidade da água potável, tratamento de águas residuais, eliminação de lodo, etc.), ao mesmo tempo que permite aos Estados-Membros da UE flexibilidade na aplicação destes instrumentos. Além disso, os dados da associação dos reguladores de recursos hídricos da UE (Quadro 3.2) mostram um amplo escopo de atuação por parte dos reguladores.

Como se pode ver no exemplo relativo à ARERA, na Itália, a independência do regulador (inclusive quanto a recursos financeiros, recursos humanos e aspectos organizacionais internos) é essencial para permitir o desempenho de sua ação regulatória, como demostrado pelas áreas independentes da ARERA (Quadro 3.1). Além disso, à semelhança da ANA, a ARERA passou por mudança nas suas funções na última década, o que a levou a reformular sua abordagem regulatória, a fim de executar a política nacional de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário.

A implementação da nova lei requererá:

  • Liderança inequívoca do Ministério do Desenvolvimento Regional e ações do Ministério da Economia, da ANA, das autoridades infranacionais, dos prestadores de serviço, dos atores da sociedade civil e dos consumidores. O sucesso da implementação da reforma depende do esforço coletivo de todos os atores e da clareza do papel de cada entidade. Nesse ambiente, será fundamental para a ANA definir o seu novo papel no que diz respeito à reforma e aos objetivos definidos pelo governo e comunicar seu papel, suas responsabilidades e suas áreas de atuação a todas as partes interessadas.

  • As partes interessadas relevantes deverão determinar ex-ante a sua “definição de sucesso”. Mais especificamente, isso deve incluir, de maneira realista, objetivos de curto e longo prazo e marcos a serem alcançados pelas partes interessadas, bem como áreas de convergência para coordenação entre as partes. O novo marco regulatório é um empreendimento de vulto que prevê objetivos de longo prazo. Assim, a ANA deve procurar aproveitar sua experiência pretérita e traçar planos realistas em torno de objetivos factíveis no curto prazo e outros que vão requerer anos de trabalho conjunto entre as partes para sua consecução.

  • O papel da ANA como facilitadora de um pacto de alto nível entre os atores envolvidos no ecossistema dos WSS, em formato similar ao criado para a gestão de recursos hídricos em 2015, entre a ANA e os 27 estados da federação, baseado em condicionantes. A ANA deve aproveitar sua experiência pretérita para consolidar a base do marco regulatório para o saneamento básico, em sincronia com os objetivos dos outros atores envolvidos no contexto da nova Lei do saneamento.

  • Um pacto de alto nível tem de reconhecer que a reforma e sua implementação mudam a dinâmica entre as instituições que atuam no setor e criam “vencedores” e “perdedores”, em termos de responsabilidades e de poderes. A implementação da reforma requererá a identificação dessas mudanças e de como elas afetam as diferentes partes interessadas e as relações entre as instituições. O engajamento e as atividades de aprimoramento da capacitação precisam ser diferenciados entre as instituições.

A nova política de abastecimento de água e saneamento precisará realocar responsabilidades dentro do ecossistema dos WSS. Ao projetar sua estratégia para a implementação do novo marco, a ANA deve estar atenta à influência de tais mudanças no processo de coordenação com outras partes interessadas. Ao desenvolver relacionamentos com atores infranacionais, a ANA pode encontrar resistências a mudanças. As autoridades infranacionais precisarão adotar e seguir os regulamentos emitidos pela ANA e o controle será deslocado do nível das autoridades locais, que não eram sujeitas à supervisão federal e definiam suas próprias estruturas regulatórias, para o nível federal. Um desafio-chave para a ANA será o de relacionar-se, de forma eficaz, com as autoridades infranacionais, de modo que todas as partes tenham uma compreensão compartilhada da lei e do regime. Os reguladores infranacionais terão um conjunto de ferramentas simples que os habilite a iniciar a adoção de normas de referência e a aprimorar o uso das melhores práticas. Existe a necessidade de engajamento dos atores nos objetivos compartilhados, incluindo aqueles que sentirem que perderam ou autonomia ou liberdade de ação devido à reforma.

Por meio do contexto legal e de políticas públicas criado pelo novo marco e com a ajuda das melhores práticas internacionais, há grande espaço para a cooperação entre a ANA e as autoridades infranacionais, como identificado no marco dos Princípios da OCDE para Governança dos Recursos Hídricos (Quadro 3.3).

Um mecanismo-chave de coordenação entre a ANA e as autoridades infranacionais deverá estar em vigor para garantir que, na aplicação da nova lei, não haja conflito formal ou aparente com relação a:

  • quem toma a decisão final

  • quem implementa a decisão

  • quem avalia o impacto e revisa regularmente o processo de implementação.

Isso complementa os exemplos de abordagem regulatória da Itália, na ARERA, e da Austrália, na ESCOSA, onde as mudanças no mandato dos reguladores revigoraram a coordenação e os diálogos com outros atores nacionais e da indústria. A coordenação eficaz pode ser alcançada por meio de uma série de atividades-chave:

  • A ANA precisa se envolver com as autoridades infranacionais para que todas as partes tenham pleno entendimento da lei e do novo regime. Para isso, os Princípios da OCDE sobre Governança dos Recursos Hídricos, aplicados ao contexto brasileiro, devem ser considerados. Mais especificamente, é necessária uma coordenação horizontal em nível federal para que os vários programas de financiamento sejam alinhados. Há necessidade de consolidação de abordagem entre as autoridades federais e o controle de qualidade precisa ser implementado de forma harmonizada.

  • A ANA pode facilitar o diálogo com outras autoridades estatais, incluindo os reguladores infranacionais, para que as responsabilidades de cada ente sejam compreendidas. Além de aumentar a conscientização, os atores do setor precisam estar comprometidos com a implementação do novo marco legal.

Haverá um lapso temporal entre a aprovação do novo marco legal, o desenvolvimento de normas de referência editadas pela ANA e a adoção das normas pelas instituições infranacionais. Por ocasião das oficinas (outubro de 2020), a ANA já havia publicado calendário de consultas e lista de prioridades para o desenvolvimento das normas de referência (ANA, 2020[12]).

No processo de desenvolvimento de normas e especialmente durante esse período de transição, a ANA deve efetuar uma autoavaliação sobre o status quo. Isso pode ocorrer na forma de um "exercício de preencher lacuna", no qual a ANA identifica, por um lado, áreas de regulação que funcionam adequadamente nas instituições infranacionais e podem, portanto, ser adaptadas em nível nacional muito rapidamente, e, por outro lado, assinala áreas que precisam de melhorias significativas e revisão completa.

A nova Lei de Saneamento constitui processo de longo prazo, o que representa uma grande revisão da estrutura anterior de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário. Consequentemente, ela gerou expectativas na população e nas partes interessadas. A maior parte delas recai sobre a ANA, já que é instituição central na reforma. Assim, há necessidade de a ANA mostrar bons resultados logo no início, com "vitórias rápidas”, no primeiro ou segundo ano após a aprovação da nova lei, a fim de evidenciar às partes interessadas as mudanças positivas decorrentes da reforma. Para isso, projetos-piloto (como o projeto de concessão de água e esgoto em Alagoas) são importantes, pois servirão de exemplo de como o marco legal poderá ser colocado em prática.

Além disso, o período de transição trará desafios específicos que precisarão ser administrados pela ANA, pelo governo federal, por financiadores e pelas autoridades infranacionais. A maioria dos contratos atuais, por exemplo, foi firmada dentro da estrutura legal, mas alguns apresentam deficiências significativas. Esses contratos devem ser objeto de atenção especial. Espera-se, ainda, que alguns contratos sejam assinados logo após a aprovação da nova Lei do Saneamento. Embora as normas de referência não estejam finalizadas, objetivos ou princípios específicos devem ser desenvolvidos pela ANA, de modo que os novos contratos estejam de acordo com o marco legal e com as boas práticas a serem adotadas pelo Brasil.

A ANA deverá estar atenta aos precedentes legais das legislações infranacionais e dos tribunais estaduais. Alguns desses podem não ser compatíveis com as normas de referência que ANA pretende estabelecer. A ANA, juntamente com as autoridades infranacionais, necessitará de estratégia para administrar as eventuais discrepâncias durante o período de transição.

A ANA precisará administrar as expectativas criadas a partir de seu papel como definidora de normas de referência - mais especificamente em relação à qualidade da regulação em nível local, que se espera que melhore, não somente com a uniformidade, mas também com o compartilhamento e a adoção de boas práticas pelas autoridades infranacionais. Finalmente, a ANA não será prestadora de serviço, mas tão somente a supervisora dos reguladores infranacionais (porque os reguladores locais supervisionarão os prestadores). O sucesso dos resultados finais dependerá das relações construtivas e eficazes entre os reguladores federais e estaduais.

Em suma, a gestão do período de transição requererá:

  • Avaliação por parte da ANA do status quo das instituições infranacionais, bem como análise dos padrões adequados e dos procedimentos atuais praticados por algumas destas instituições infranacionais.

  • Adoção, por parte da ANA, de uma postura clara na gestão das expectativas de curto prazo em relação ao que pode ser entregue aos consumidores e ao setor nos próximos dois anos, bem como a forma como a prestação dos serviços e as questões práticas contratuais serão tratadas, até que as normas de referência estejam desenvolvidas e implementadas.

A ANA é considerada pelas partes interessadas como um regulador profissional, maduro e respeitado. A inclusão de novas responsabilidades como consequência da Lei do Saneamento de 2020 é resultado do reconhecimento de sua capacidade e de seu sucesso na área de gestão de recursos hídricos. Para implementar a reforma, o novo mandato e as novas funções devem ser acompanhados por um esforço para garantir financiamento, habilidades e competências adequados, bem como uma cultura unificada.

As competências atuais da ANA não são necessariamente adequadas às novas funções. Neste momento, a ANA dispõe de recursos humanos capacitados para a gestão de recursos hídricos. As novas responsabilidades em relação à regulação do WSS (emissão de normas de referência e supervisão regulatória, capacitação, construção de relacionamento, etc.) exigem o foco em um conjunto diferente de habilidades. Normalmente, os recursos humanos de reguladores do setor hídrico necessitam de profissionais provenientes das áreas econômicas, jurídicas, de contabilidade (Figura 3.4).

Além de uma avaliação das habilidades necessárias, a situação fiscal no Brasil faz com que a ANA tenha dificuldade para atualizar seu quadro de servidores diante das rígidas normas federais. O Ministério da Economia, que controla o orçamento federal, restringe as regras de contratação de pessoal com a exigência de que os órgãos públicos solicitem a abertura de concursos públicos para preenchimento de vagas. Tais vagas comporão a força de trabalho de que a ANA precisa para cumprir seu novo mandato. Historicamente, o Ministério da Economia tem autorizado poucos concursos para órgãos públicos com a justificativa de manter o equilíbrio fiscal. Embora as restrições federais à progressão na carreira com base na experiência e na formação acadêmica e aumentos salariais por tempo de serviço tenham acabado, outras restrições, como a de movimentação de pessoal entre as agências, (Government of Brazil, 2018[13]) ainda estão em vigor.

Em suma, as seguintes soluções podem ser consideradas:

  • Neste momento, a ANA dispõe de recursos humanos capacitados para a gestão de recursos hídricos. As novas responsabilidades em relação à regulação do WSS (emissão de normas de referência e supervisão regulatória, capacitação, construção de relacionamento, etc.) exigem o foco em um conjunto diferente de habilidades. Consequentemente, é aconselhável que a ANA não se concentre apenas na substância da reforma regulatória, mas também na gestão interna dos recursos que lhe possibilitem a entrega de alguns "sucessos rápidos". Por exemplo, a ANA precisará repensar seu conjunto de habilidades e adicionar mais especialistas jurídicos, econômicos e analistas de dados à base de funcionários que hoje se concentra em engenheiros. A integração de novos profissionais à ANA provavelmente será um desafio, pois os atuais terão de "dar espaço" aos novos servidores. Além disso, as várias disciplinas precisarão trabalhar de forma conjunta para agregar valor aos processos regulatórios e à tomada de decisão da ANA, ao invés de competir internamente.

  • A ANA deve estar atenta aos recursos financeiros adicionais necessários para cumprir o mandato conferido pela nova Lei de Saneamento, bem como considerar como o aumento do orçamento será financiado e como isso pode afetar sua independência no longo prazo.

A nova Lei de Saneamento confere à ANA a responsabilidade de verificar a adoção e a adesão por parte das autoridades infranacionais às novas normas de referência dos WSS. No entanto, a nova função não foi acompanhada por correspondente poder de execução, o que está em desacordo com as recomendações de melhores práticas da OCDE, que afirma: “todas as principais funções regulatórias são desempenhadas por instituições responsáveis com poderes de execução”. Isso sugere que a ANA tem um escopo de ação estreito quando se trata de suas regulações. No entanto, pode-se desenvolver um sistema de referência (benchmarking) que apresente comparações de desempenho. O aumento da transparência pode pressionar os atores que não estão implementando as normas de referência.

Dados da OCDE, com base em pesquisa sobre a Governança dos Reguladores (OECD, 2014[7]), sugerem que, entre os cinco setores econômicos, o escopo de atuação dos reguladores de recursos hídricos é o segundo menos restrito. O escopo de atuação refere-se ao leque de atividades que o regulador pode realizar, incluindo tomada de decisão e exercício de poderes coercitivos e sancionadores. Em vez de mecanismos coercitivos, a nova lei cria incentivos indiretos para que as instituições infranacionais adotem as regulamentações dos WSS editadas pela ANA. Exemplo disso é a concessão, por parte do governo federal, de financiamento para WSS a municípios que adotem as normas de referência da ANA. Uma sondagem interativa, realizada durante o terceiro dia da segunda sessão de oficinas, revelou que os participantes identificavam, por esmagadora maioria, a necessidade de ferramentas adequadas para premiar o bom desempenho e penalizar o mau desempenho, como mecanismo prioritário para a ANA executar sua estratégia nacional de saneamento.

A nova Lei do Saneamento confere à ANA a responsabilidade de rever regularmente o progresso da adoção das normas de referência por parte das instituições infranacionais. Entretanto, a ANA não tem nenhum poder sancionador com relação às instituições que não adotarem as normas, exceto o de reter financiamento federal. Não há ferramentas legais para a ANA desenvolver uma abordagem incremental e orientada à adoção das normas. Além disso, a situação atual sugere que as instituições municipais têm recebido financiamento mesmo quando não adotam as normas editadas pela ANA nem apresentam planos municipais de saneamento. A aplicação de regras e a execução de políticas, num contexto em que sua implementação e supervisão foram permissivas no passado, constitui um desafio. Entretanto, há inúmeras abordagens que a ANA pode desenvolver para mitigar essa deficiência estrutural no que diz respeito a seus poderes regulatórios.

Mesmo nesse contexto legal, os Princípios da OCDE para as Melhores Práticas de Execução e o Kit de Ferramentas da OCDE para Execução e Fiscalização (OECD, 2018[15]) podem orientar a ANA na criação de estratégias para desenvolver supervisão eficaz. Os objetivos de um bom sistema de fiscalização são:

  • Entregar os melhores resultados possíveis para prevenção ou mitigação de risco e promover prosperidade econômica e melhorar o bem-estar em prol do interesse público.

  • Assegurar a confiança e a satisfação das diferentes partes interessadas, cujas visões, muitas vezes, podem ser conflitantes (OECD, 2012[16]). Isso é importante no contexto brasileiro atual, no qual papéis, responsabilidades e funções das instituições infranacionais e dos prestadores locais podem mudar no longo prazo enquanto se implementam novas regras dos WSS.

Mesmo sem poder de coerção, a ANA pode e deve usar um conjunto de ferramentas de “abordagem suave” para aumentar a probabilidade de as autoridades infranacionais aderirem às suas normas. São elas:

  • Engajamento com as agências infranacionais. Isso está explicado em detalhe na seção “engajamento das partes interessadas” abaixo. O papel da ANA será crucial para envolver os atores relevantes do setor de WSS no processo de definição das normas de referência.

  • Fortalecimento e capacitação. Prover capacitação para agências reguladoras infranacionais de WSS é uma das principais responsabilidades da ANA, que pode ser aproveitada para ajudar os reguladores infranacionais a cumprirem os novos requisitos regulatórios. A fim de alcançar sucesso na prerrogativa de desenvolver as capacidades das instituições infranacionais, a ANA precisa começar com uma avaliação sobre as habilidades e as deficiências encontradas nesses órgãos. Dessa forma, poderá identificar boas práticas a serem compartilhadas entre os reguladores estaduais e identificar áreas prioritárias, no curto prazo, e promover desenvolvimento estratégico no longo prazo.

  • Ampliação da transparência. Por um lado, a transparência deve ser implementada no funcionamento do setor de WSS (ou seja, visibilidade de contratos, documentos de licitações, indicadores de desempenho e evolução em relação a eles, etc.). Por outro lado, as análises e avaliações de desempenho levadas a cabo pela ANA, sobre a conformidade das autoridades infranacionais às normas de referência (por meio de um sistema de referência - benchmarking) e às estratégias prospectivas e planos/resultados de engajamento das partes interessadas, precisam ser disponibilizadas e escritas em linguagem acessível ao público em geral.

  • Coleta de dados e sua transmissão à ANA. É importante que se tracem objetivos e metas para os prestadores de serviço (por exemplo, limites verificáveis e claros a serem repassados à ANA). Esses elementos devem ser sistematizados nas normas de referência e deverão incluir resultados regulatórios previamente estabelecidos. A ANA deve considerar diversas formas de receber as informações, inclusive usando os sistemas atuais, tais como o Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento (SNIS). Conforme observado no exemplo abaixo (Quadro 3.4) do regulador australiano ESCOSA, o modelo regulatório iterativo implica o uso de uma gama de dados e informações variadas para que o regulador realize uma análise ex-post da regulação. Da mesma forma, a União Europeia realiza “verificações de adequação” para garantir que a legislação anterior esteja ajustada à finalidade. O resultado das verificações é levado em consideração como parte das avaliações de impacto legislativo mais amplo para o setor hídrico (EC, 2020[17]). Além disso, o regulador italiano, ARERA, emprega um site de coleta de dados para dar apoio a suas ações regulatórias e de fiscalização.

Por fim, a ANA pode explorar o desenvolvimento e o uso de abordagens novas baseadas nos princípios de “regulação responsiva”. Em outras palavras, a ação coercitiva deve ser modulada dependendo do perfil e do comportamento das atividades específicas. No entanto, do ponto de vista comportamental, uma abordagem baseada em sanções mostrou-se ineficiente para impedir o mal comportamento e tem como premissa a suposição equivocada de que os atores em questão provavelmente se comportarão mal. Na realidade, uma pesquisa demostrou que somente um pequeno número de atores se comportam mal de forma intencional. Essa mesma pesquisa evidenciou que a maioria dos atores deseja fazer o correto na maioria das vezes, mas que podem não saber como fazê-lo. Portanto, é necessário ajudá-los para que façam a coisa certa (Hodges, 2017[18]). Essa é a base da Regulação Ética dos Negócios (EBR, sigla em inglês).

O EBR baseia-se nas descobertas da psicologia comportamental, nos valores éticos compartilhados e nos incentivos econômicos e culturais. Parte da ideia central de que as decisões são tomadas por indivíduos e não por organizações. O EBR implica uma abordagem colaborativa quanto ao desenvolvimento e à implementação da regulação e estimula o diálogo entre os atores do mercado, as partes interessadas e os servidores públicos, com base em um enfoque ético compartilhado. Na ausência de poderes de coerção, a aplicação dos elementos do EBR na supervisão regulatória pode ser usada pela ANA como estratégia a ser seguida. O EBR foi adotado pela Comissão da Indústria de Água da Escócia (WICS, sigla em inglês) no processo de revisão de futuras cobranças e permitiu que o regulador redesenhasse não somente sua abordagem em relação ao regulamento, mas também seu relacionamento com importantes partes interessadas, como a indústria e os consumidores (Quadro 3.5). A ANA pode adotar princípios do EBR no desenvolvimento de suas normas da referência, bem como no planejamento de sua estratégia de engajamento das partes interessadas, que será discutido com mais profundidade na subseção “Assegurando o engajamento efetivo das partes interessadas”.

Uma série de soluções pode ser contemplada para lograr a supervisão regulatória na ausência de poder de coerção por parte da ANA:

  • A ANA deve garantir que as regras de alocação de financiamento para as instituições infranacionais que não seguiram as normas de referência sejam cumpridas. Tais ações demonstram a robustez do marco legal e servem de exemplo de como a nova política deve ser seguida.

  • Mesmo sem poderes coercitivos, um conjunto de "ferramentas leves" podem ser implementados pela ANA, tais como:

    • manter engajamento contínuo e significativo com as agências infranacionais

    • fortalecer e construir capacidades estatais nas agências reguladoras infranacionais de WSS

    • aumentar a transparência na tomada de decisões e no funcionamento dos WSS

    • estabelecer sistema robusto de coleta, análise e divulgação de dados.

  • A ANA deve considerar o desenvolvimento de abordagens alternativas e guiadas pelas ciências comportamentais para o desenvolvimento da regulação, como a EBR, que implica colaboração e diálogo entre os atores do mercado, as partes interessadas e os servidores públicos, com base na ética compartilhada.

No processo de engajamento das partes, a ANA deve estar atenta a grupos que precisam de maior envolvimento. Além disso, deve atuar para definir o papel desses grupos, já que diversas categorias precisarão ser incluídas nesse processo. São elas:

  • o governo, como o ator que define o marco legal e a estratégia nacional dos WSS

  • operadores, agências infranacionais (incluindo os grupos de funcionários, como sindicatos) e prestadores de serviços

  • consumidores, atuais e futuros, que a política nacional pretende afetar

Para o sucesso deste processo, como sugerido pelos normativos da OECD (OECD, 2020[22]), a ANA poderá ser impelida a ensinar às partes interessadas a cultura do engajamento. As partes interessadas precisam estar bem informadas sobre quando e por que teriam a oportunidade de influenciar o processo regulatório. Isso seria especialmente relevante para as instituições infranacionais menores que não passaram pelo processo de engajamento anteriormente ou para novos grupos de consumidores que foram criados no sistema novo.

Como recurso para engajamento das partes interessadas, a ANA deve desenvolver parcerias estratégicas como meio de compartilhar boas práticas, de modo a entender os problemas centrais enfrentados pelas instituições infranacionais e oferecer esclarecimento e orientação onde for mais necessário. Isso, por sua vez, pode ajudar na capacitação. Por meio da capacitação, a ANA pode também influenciar a relação com os consumidores finais ao empoderar prestadores de serviço para comunicarem-se melhor com os consumidores finais (consumidores atuais ou potenciais) (Figura 3.6). Observe-se que os consumidores (potenciais) não-atendidos, geralmente, não são ouvidos nos processos regulatórios locais, pois normalmente constituem as populações mais vulneráveis. A ANA pode fornecer incentivos que ajudem as instituições infranacionais a lidarem com os impactos de longo prazo das políticas atuais.

Como característica particular da situação brasileira, a ANA também deve buscar repensar sua relação estratégica com sindicatos, associações, órgãos reguladores locais, empresas públicas, etc., enquanto atores importantes das instituições infranacionais. A resistência à mudança dos servidores que trabalham nas instituições infranacionais ou dos prestadores de serviços pode ser exacerbada por um contexto econômico mais amplo (como a atual crise do COVID-19) ou pelo medo de perder o emprego. Na Comissão da Indústria de Água da Escócia (ESCOSA), não raro os reguladores incluem uma gama de partes interessadas em sua estratégia formal de engajamento. A vantagem do envolvimento de uma ampla base de interessados não é apenas a melhora na compreensão e no cumprimento das regras e regulamentos, mas também o aumento da conscientização sobre as atividades do regulador e a maior aceitação do público. É claro que estabelecer um histórico de iniciativas bem-sucedidas é crucial para a criação de confiança entre os cidadãos.

Além disso, os WSS constituem setor intensivo em capital e monopolista, com significativas falhas de mercado. É importante, portanto, que a ANA garanta que as partes interessadas nesse sistema de governança multinível (incluindo outros reguladores federais, governos federal e local) sejam continuamente avaliadas sobre os desenvolvimentos regulatórios do setor. Isso significa que a estratégia de engajamento e de comunicação com as partes interessadas não é definida apenas para o curto prazo. Pelo contrário, é aconselhável que se construa e se mantenha um relacionamento de longo prazo e uma cultura de coordenação contínua, para que os objetivos estabelecidos na nova Lei de Saneamento sejam alcançados na próxima década.

Ademais, a realidade do novo marco é que as normas de referência desenvolvidas serão numerosas e complexas e deverão levar em consideração várias interdependências. A ANA terá um número elevado de instituições infranacionais cujos regulamentos precisarão ser revistos. Isso significa que a ANA ficará em desvantagem em termos de conhecimento e acesso à informação. Em vista disso, pode ser necessário considerar uma abordagem diferente para o engajamento das partes interessadas, semelhante aos pactos de alto nível com atores governamentais mencionados na seção “Obtendo clareza nos papéis”, com a possibilidade de se criarem mecanismos similares aos dos prestadores de serviços. Esses mecanismos são como “contratos morais”, uma espécie de compromisso entre o regulador e as entidades reguladas para que trabalhem juntas com espírito de confiança, cooperação e comunicação aberta - com o objetivo de fornecer serviços de qualidade aos consumidores e cumprir os objetivos acordados (ESCOSA, 2000[23]). Os benefícios de um pacto de alto nível com prestadores de serviço são: relacionamento menos conflitivo, uso dos recursos, planejamento e aumento de produtividade - que conduzem a melhor qualidade do serviço prestado. A ESCOSA utilizou pactos de alto nível com a indústria, que também foram acompanhados por procedimento de revisão conjunta – ou “exames de saúde”. Esses exames podem vir na forma de questionário que avalie a robustez do relacionamento, seguido de uma discussão aberta em que os resultados são debatidos e possíveis soluções para os problemas identificados são apresentadas por ambas as partes.

Em suma, o envolvimento efetivo das partes interessadas dependerá de vários elementos-chave:

  • Fortalecimento da estratégia de engajamento das partes interessadas, bem como o uso das orientações da OCDE para treinar as partes interessadas externas e construir expectativas quanto a questões compartilhadas.

  • Reconsideração da relação da ANA com os grupos não habitualmente engajados (por exemplo, sindicatos ou consumidores não-atendidos) e aprofundamento dessas relações levando em consideração o contexto econômico atual e os desafios específicos que estes grupos poderão encontrar.

  • Manutenção de diálogo contínuo com as partes interessadas, para que todos os atores-chave (incluindo governo federal, instituições infranacionais, grupos de consumidores e prestadores privados) possam avaliar o desenvolvimento do setor, em tempo real, de modo que não haja surpresas entre os atores.

Uma oportunidade-chave oferecida pelo novo marco legal é a possibilidade de regionalização (que deve incluir, preferencialmente, pelo menos uma área metropolitana)3. Isso permite que as mudanças sejam executadas em nível mais elevado, uma vez que as autoridades infranacionais estarão encarregadas de desenvolver iniciativas e de buscar investimento em nível regional, em vez de municipal, diferentemente do que acontecia antes do novo marco legal4. A regionalização visa a servir a um duplo papel: (1) redistribuição de fundos de áreas ricas para áreas pobres; e (2) promoção de economias de escala por meio da implementação de grandes projetos. De acordo com a nova Lei do Saneamento, compete à ANA promover a regionalização na prestação de serviços5, por meio do desenvolvimento das normas de referência e das regulamentações.

Há um entendimento de que a regionalização ainda não está determinada, mas ela levará em consideração questões geográficas e de bacias hidrográficas e não apenas os limites políticos regionais. No Brasil, o processo de regionalização é importante para a implementação da nova política de WSS, porque permite que o modelo regulatório seja considerado no contexto local e, assim, se concentre nas necessidades específicas de cada região. O caso brasileiro é muito semelhante ao da Itália, onde a regionalização foi implementada para WSS desde 1995 (Quadro 3.6).

Em suma, para atingir os objetivos de regionalização da nova lei:

  • A ANA deve trabalhar com outras instituições federais relevantes para a definição e a execução dos objetivos de regionalização presentes na nova Lei do Saneamento, uma vez que a ANA terá uma visão privilegiada do status quo dos WSS e das oportunidades emergentes.

  • A ANA deve conceber e promover políticas que incentivem as autoridades infranacionais a desenvolver projetos de investimento numa perspectiva regional e não local. Deve-se dar especial atenção à profissionalização dos reguladores e dos operadores.

A pesquisa da OCDE mostra que a regulação desempenha um papel importante no investimento por seus efeitos na definição do retorno do capital, bem como na garantia de uso eficiente e expansão da infraestrutura mediante a fixação dos preços (Cette, Lecat and Ly-Marin, 2017[25]) (OECD, 2017[26]). As barreiras à entrada influenciam negativamente o investimento, porém, quando combinadas com a regulação baseada em incentivos, a independência regulatória impulsiona investimentos.

Além disso, a pesquisa sobre Governança dos Reguladores de Recursos Hídricos (Figura 3.8) mostra que o investimento crescente é parte fundamental das funções regulatórias dos reguladores de água. Isso está de acordo com o mandato recém conferido à ANA.

A recomendação contida na publicação Governança da Infraestrutura (OECD, 2020[27]), adotada pelo Conselho da OCDE em julho de 2020, fornece aos países orientações práticas para processos de tomada de decisão eficientes, transparentes e responsivos no investimento em infraestrutura. Isso se traduz em 10 recomendações específicas que são interdependentes (Figura 3.9). As recomendações podem ser adaptadas ao contexto brasileiro, pois favorecem a abordagem global de governo e compreendem todo o ciclo de vida dos projetos de infraestrutura, com ênfase especial em considerações regionais, sociais, de gênero e ambientais. Uma característica fundamental é a promoção de uma rede regulatória coerente, previsível e eficiente.

O governo brasileiro estabeleceu metas de investimento para os WSS por meio do Plano Nacional de Saneamento. No entanto, além das restrições fiscais de longa data, há o desafio adicional recém-surgido decorrente da crise do COVID-19. Consequentemente, o investimento e a entrega de infraestrutura são ferramentas importantes para os esforços de recuperação econômica e social, no contexto econômico previsto. Na prática e em harmonia com os objetivos da política nacional de WSS, a ANA precisa criar incentivos de longo prazo para atrair investidores privados estrangeiros e, em alguns casos, para incentivar as companhias existentes a continuarem a prestar os serviços atuais.

Além das diretrizes fornecidas pelo marco legal e pela prática internacional, o Brasil já tem experiência na abertura de setores públicos a investimentos privados. Isso aconteceu no setor elétrico, nos anos 1990, e a ANA deve se esforçar para aprender com essa experiência (por exemplo: por meio de pesquisa sobre a política e os contratos de privatização e de compartilhamento de conhecimento pelo regulador do setor, a Agência Nacional de Energia Elétrica). Há espaço para a criação de foros de "fertilização cruzada" entre os reguladores de setores brasileiros, suas experiências e os papéis desempenhados na implementação de grandes reformas, com metas de políticas ambiciosas.

O planejamento do investimento em infraestrutura dependerá de diversos elementos-chave:

  • A responsabilidade-chave da ANA na criação das normas de referência deve levar em consideração as políticas que incentivem as instituições infranacionais a buscarem investimentos privados. Nesse processo, a ANA pode aprender com outras agências, como o regulador de energia elétrica.

  • No contexto da ANA e da nova Lei do Saneamento, as recomendações da OCDE contidas na publicação Governança da Infraestrutura podem ser aplicadas com os seguintes elementos:

    • Identificar objetivos de políticas públicas, avaliar se a regulação é necessária e como as metas podem ser alcançadas de maneira mais eficaz e eficiente;

    • considerar outros meios que não somente a regulação e comparar as diferentes abordagens para identificar a melhor;

    • apoiar a coordenação entre os marcos regulatórios supranacionais, nacionais e infranacionais;

    • fornecer ferramentas baseadas em evidência para decisões regulatórias, incluindo avaliação do engajamento das partes interessadas, avaliações de impacto econômico, fiscal, social e ambiental, auditoria e avaliação ex-post;

    • realizar revisões sistemáticas da regulação existente relevante para a infraestrutura, incluindo considerações de custos e benefícios, de modo a garantir que as regulações estejam atualizadas, justifiquem os custos, sejam efetivas, consistentes e que satisfaçam os objetivos das políticas públicas almejados;

    • promover boa governança das agências regulatórias a fim assegurar o ajuste sustentável da tarifa, a qualidade regulatória, a confiança do mercado e contribuir para a consecução dos objetivos da política pública (por exemplo, independência; transparência; responsabilização; espaço de atuação; fiscalização; capacitação e pesquisa).

Além de compreender as necessidades de investimento de regiões específicas, a ANA e outros atores relevantes no setor de serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário (incluindo o governo) precisam entender quais são as necessidades específicas dos investidores privados e dos financiadores. Esse entendimento precisa ser levado em consideração no processo de criação da estrutura regulatória que visa a aumentar incentivos para o investimento privado. Deve-se, por exemplo, levar em consideração as seguintes questões-chave: financiamento de contratos, incentivos aos operadores e às instituições infranacionais para cumprirem os termos do contrato no longo prazo (30 anos ou mais) e a disponibilidade de produtos financeiros adequados.

Além disso, conforme mencionado na subseção “Planejando a infraestrutura e envolvendo o setor privado em serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário (WSS)”, as normas de referência e a regulação da ANA precisam influenciar os operadores a buscarem financiamento privado e não apenas a procurarem fontes de financiamento estatal, bem como devem ter em conta a cobertura dos custos de longo prazo e a eficiência crescente do investimento.

A estabilidade regulatória é um resultado previsto com base na edição de normas de referência pela ANA e na harmonização da regulação entre as instituições infranacionais. Essa é uma característica-chave a que os investidores privados aspiram. Consequentemente, para que a política referente a WSS alcance seu objetivo de aumentar o acesso ao investimento privado no setor, há que se ter o compromisso de manter marcos harmonizados e aplicá-los aos novos contratos. Caso contrário, corre-se o risco de os investidores perderem a confiança no novo marco e o capital privado não ser investido.

A aceitação pública do envolvimento privado no setor de WSS pode apresentar duas questões. Por um lado, como destacado por um dos peritos internacionais, uma característica da situação atual é que a política local está envolvida na operação e na provisão de WSS nos municípios. Mudar essa situação pode ser difícil. A ANA deve trabalhar com as instituições locais para destacar os benefícios decorrentes dos investimentos e do envolvimento do setor privado para os consumidores. Como o professor Berg observou durante a oficina de 19 a 22 de outubro, os cidadãos “precisam estar confiantes de que o sistema funciona para eles”.

Por outro lado, há o risco de que haja uma aversão cultural inicial por parte dos consumidores a qualquer aumento de gestão privada dos serviços de água, oriunda do entendimento de que os recursos hídricos são um bem público. A aceitação pública da participação do setor privado é importante porque a percepção dos cidadãos é fundamental para a responsabilização da regulação. A ANA pode voltar-se para algumas soluções possíveis. Por exemplo, um regulador econômico dedicado a garantir o interesse público, tal como o Ofwat, na Inglaterra e no País de Gales (Reino Unido), pode conseguir a confiança pública com o setor completamente privatizado. A ANA pode posicionar-se como uma espécie de garantidora. Outra opção seria a manutenção da confiança pública por meio da gestão transparente, com participação das partes interessadas e uma liderança clara que tome decisões estratégicas (por exemplo, assegurando a participação do público no controle da instituição encarregada do setor, inclusive em parcerias público-privadas). Finalmente, aprendendo a partir do exemplo da Comissão da Indústria da Água da Escócia (WICS), uma abordagem colaborativa com o público que se pode lograr por meio de processos de consulta pública, colocando os consumidores e as comunidades no centro do processo (isso pode ser feito por meio de painéis de consulta ao consumidor, foros do consumidor, etc.).

Os seguintes elementos devem ser considerados:

  • Diálogo entre as partes interessadas, especialmente com os fornecedores de financiamento privado, faz-se necessário para entender os desafios que a estrutura atual apresenta aos investidores. Isso lançaria luz sobre a adequação da estrutura financeira aos propósitos e às necessidades do investimento em WSS e poderia indicar outras áreas nas quais o governo federal precisaria focar.

  • A harmonização e a estabilidade do marco regulatório e contratual do saneamento, trazido pelas normas de referência da ANA, serão fundamentais para atrair novos investimentos.

  • A aceitação do investimento privado em saneamento será percebida tanto em nível da prestação de serviço quanto para os consumidores finais. A ANA deve trabalhar para aumentar a conscientização das partes interessadas sobre os benefícios de curto e longo prazos do investimento privado.

References

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[23] ESCOSA (2000), Speech by Lewis W. Owens at the SA Power Briefing, Essential Services Commission of South Australia.

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[7] OECD (2014), The Governance of Regulators, OECD Best Practice Principles for Regulatory Policy, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264209015-en.

[16] OECD (2012), Recommendation of the Council on Regulatory Policy and Governance, OECD Publishing, Paris, https://dx.doi.org/10.1787/9789264209022-en.

[5] OECD/ANA (2019-21), “Water Governance Workshops”.

[28] Official Gazette of the Italian Republic (2017), Law n.205/17, https://www.gazzettaufficiale.it/eli/id/2017/12/29/17G00222/sg.

[24] Official Gazette of the Italian Republic (1994), Law n. 36/1994, https://www.gazzettaufficiale.it/eli/id/1994/01/19/094G0049/sg.

[1] Official Journal of the Union (2020), Law 14.026 of 15 July 2020, https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/lei-n-14.026-de-15-de-julho-de-2020-267035421.

[3] SNIS (2018), The National Sanitation Information System, Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento, http://www.snis.gov.br/painel-informacoes-saneamento-brasil/web/painel-setor-saneamento.

[9] WAREG (2021), Water Regulatory Governance across Europe, https://www.wareg.org/documents/water-regulatory-governance-around-europe/ (accessed on 5 January 2022).

[20] WICS (2020), Strategic Review of Charges, https://wics.scot/publications/price-setting/strategic-review-charges-2021-27/approach/2021-27-methodology-refinements.

[21] WICS (2020), Strategic Review of Charges 2021-27 – Draft Determination, https://wics.scot/publications/price-setting/strategic-review-charges-2021-27/determinations/2021-27-draft-determination.

As tabelas resumem as principais ações apresentadas no Capítulo 3.

Observações

← 1. De acordo com a legislação nacional, o saneamento básico no Brasil constitui os serviços de i) abastecimento de água potável, ii) esgotamento sanitário, iii) limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos e iv) drenagem e manejo de águas pluviais. Neste Relatório, quando se usar o termo WSS (Water and Sanitation Services) estar-se-á referindo tão somente aos dois primeiros componentes, ou seja, abastecimento de água e esgotamento sanitário.

← 2. Lei 14.026 de 15 de julho de 2020, Artigo 11-B

← 3. Lei 14.026, de 15 de julho de 2020, Art. 8, §2º: "Para os fins desta Lei, as unidades regionais de saneamento básico devem apresentar sustentabilidade econômico-financeira e contemplar, preferencialmente, pelo menos 1 (uma) região metropolitana, facultada a sua integração por titulares dos serviços de saneamento."

← 4. Lei 14.026 de 15 de julho de 2020, Art. 13

← 5. Lei 14.026, de 15 de julho de 2020, Art. 4-A, §3º, inciso V

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