Perspetiva continental: prioridades políticas para uma digitalização em benefício de todos em África
A recessão económica desencadeada pela pandemia da COVID-19 está a afetar duramente os países africanos. A maior parte enfrenta a sua primeira recessão em 25 anos: é provável que o crescimento do produto interno bruto (PIB) diminua em 41 dos 54 países em 2020, de acordo com as previsões do Fundo Monetário Internacional (outubro de 2020). Em contrapartida, quando a crise financeira mundial atingiu o continente em 2009, apenas 11 países entraram em recessão. A crise afetou o crescimento de África através de vários canais internos e externos (Tabela 1). Por exemplo, a forte queda dos preços do petróleo no primeiro trimestre de 2020 abalou gravemente as economias baseadas na produção e exportação de matérias–primas. O encerramento do setor do turismo mundial, que emprega 24,3 milhões de pessoas no continente, afetou duramente os países dependentes do turismo. A procura interna e o comércio regional foram negativamente afetados pelas medidas de confinamento. Pelo menos 42 países impuseram confinamentos parciais ou totais às atividades económicas e à livre circulação de pessoas (UNECA, 2020). A crise levou igualmente ao adiamento da fase de implementação da Zona de Comércio Livre Continental Africana até 2021.
É provável que a crise mundial prejudique África e a afaste da trajetória de desenvolvimento pré - COVID-19. A crise poderá levar cerca de 23 milhões de pessoas da África Subsariana para uma situação de pobreza extrema ao longo de 2020. A acumulação de capital e a produtividade em África poderão permanecer abaixo das suas trajetórias anteriores à COVID-19 até 2030 (Djiofacik, Dudu e Zeufack, 2020). As perturbações com maiores consequências nas economias nacionais podem ser a diminuição da produtividade, a redução da utilização de capital e o aumento dos custos do comércio. A estas acrescem as perdas no sucesso escolar e na saúde, que podem prejudicar a capacidade desta geração auferir de rendimentos mais elevados e melhorar o seu bem-estar. Estas perturbações irão atrasar a transformação produtiva de África e, consequentemente, a realização do plano de ação da União Africana intitulado Agenda 2063: A África que queremos.
Os governos africanos estão a enfrentar a pandemia de COVID-19 com menos recursos financeiros per capita do que durante a crise financeira mundial de 2008. O montante do financiamento per capita diminuiu no período de 2010-18, tanto no tocante às receitas internas como aos fluxos financeiros externos, em 18% e 5%, respetivamente (Figura 1). Em média, os países africanos registaram receitas públicas de USD 384 per capita em 2018, em comparação com USD 2 226 nos países da América Latina e Caraíbas, USD 1 314 nos países em desenvolvimento na Ásia e mais de USD 15 000 nos países europeus e outros países de rendimento elevado. Os rácios impostos/PIB já estavam a estagnar à 17,2% desde 2015 em 26 países africanos, apesar das importantes reformas fiscais (OCDE/ATAF/Comissão da UA, 2019).
As receitas públicas irão contrair-se ainda mais. Os rácios impostos/PIB devem contrair-se em cerca de 10% em, pelo menos, 22 países africanos entre 2019 e 2020; o total das poupanças nacionais poderá diminuir 18%, as remessas dos emigrantes 25% e o investimento direto estrangeiro (IDE) 40%. Os doadores comprometeram-se a manter a ajuda pública ao desenvolvimento (APD) a níveis anteriores à crise. No entanto, os défices orçamentais irão provavelmente duplicar em 2020, pelo que é provável que a dívida de África aumente para cerca de 70% do PIB em USD a preços correntes face a 56,3%, em 2019. Embora esta média continue a ser sustentável, o rácio dívida/PIB deverá ultrapassar 100% do PIB em, pelo menos, sete países. A moratória da dívida do G20, que se iniciou em abril de 2020, assegura o alívio necessário aos países africanos, mas continua a ser insuficiente. A suspensão e, em alguns casos, a reestruturação da dívida podem revelar-se necessárias para libertar recursos essenciais para alcançar a Agenda 2063 da União Africana. Sempre que possível, as negociações da dívida devem incluir o cada vez maior grupo de credores privados (ver Capítulo 8). Por último, a crise da COVID-19 torna a aceleração da transformação produtiva e dos processos de integração continental de África mais urgentes.
As economias africanas estão a passar por um processo de digitalização
A digitalização – a utilização de tecnologias digitais, dados e interligação para alterar as atividades existentes ou criar novas atividades – está no bom caminho em todas as cinco regiões de África. O continente regista vários grandes êxitos e ecossistemas dinâmicos. A revolução do dinheiro móvel é um exemplo bem conhecido: com 300 milhões de contas – o número mais elevado do mundo – Os serviços móveis de pagamento começaram a transformar os mercados de trabalho em África a expandir o acesso aos serviços financeiros à populações fora dos grandes centros urbanos e a dar acesso às pequenas e médias empresas (PME) locais a modelos de negócio inovadores. A indústria africana de telecomunicações, que constitui o centro da transformação digital, mostrou um crescimento robusto de subscritores, receitas e despesas de capital. Até à data, mais de 500 empresas africanas oferecem inovação tecnológica no setor dos serviços financeiros (Fintech). Joanesburgo e a Cidade do Cabo na África do Sul, Nairobi no Quénia, e Lagos na Nigéria, contam-se entre as 100 principais cidades para ecossistemas Fintech em todo o mundo. Os africanos empreendedores e digitalmente esclarecidos estão a tirar partido das tecnologias digitais e das necessidades específicas de África para implementar modelos de negócio de crescimento rápido. A valorização de algumas start-ups africanas ultrapassam atualmente os USD 1 000 milhões (Capítulo 1). Mais de 640 polos e incubadoras tecnológicas operam atualmente em todo o continente, face a 314 em 2016. No entanto, para alcançar os objetivos da Agenda 2063 e criar empregos para os jovens em grande escala, as transformações digitais têm de ir além dessas ilhas de sucesso.
As infraestruturas das tecnologias da informação e comunicação (TIC) têm evoluído de forma estável e as perspetivas de novos projetos continuam a ser sólidas. Em 2018, o financiamento de infraestruturas digitais foi de USD 7 mil milhões, 80% dos quais provenientes de investidores privados (ICA, 2018). A capacidade total de entrada internacional de internet de banda larga de África aumentou mais de 50 vezes em apenas dez anos, alcançando 15,1 terabytes por segundo (Tbps) em dezembro de 2019, face a apenas 0,3 Tbps em 2009 (Hamilton Research, 2020). A rede de fibra ótica operacional passou de 278 056 quilómetros (km) em 2009 para 1,02 milhões de km em junho de 2019. As subscrições de telemóveis mais do que duplicaram numa década, atingindo 88 em cada 100 pessoas em 2018. Cerca de 58% da população vive atualmente numa área coberta por redes 4G (Figura 2). Através dos programas pioneiros da sua Agenda 2063, a União Africana tem 114 projetos de infraestruturas de TIC que visam modernizar os principais pontos de troca de tráfego da internet, construir novas infraestruturas de fibra de banda larga e modernizar as estruturas de fibra terrestre existentes (AUDA-NEPAD, 2020).
A população de África, jovem e cada vez mais qualificada, é outro ativo para acelerar a transformação digital do continente. O número de africanos com idades compreendidas entre os 15 e os 29 anos com um nível de ensino secundário ou superior passou de 47 milhões em 2010 para 77 milhões em 2020. Os progressos são mais acentuados no Norte de África, onde 47% dos jovens têm, pelo menos, uma educação secundária (Figura 3). Caso se mantenham as atuais tendências de evolução, este número será de 165 milhões até 2040. Em termos relativos, a proporção de jovens africanos que concluiu um ensino secundário ou superior poderá atingir 34% em 2040, próximo da percentagem na Ásia e bem acima dos atuais 23%. Caso os países africanos repliquem as políticas de ensino acelerado da Coreia, esta percentagem poderá até chegar a 73% (233 milhões) em 2040.
Poucos beneficiam das oportunidades de emprego criadas pela transformação digital
Apesar dos progressos já referidos, os que beneficiam das oportunidades de emprego criadas pela transformação digital de África são muito poucos. As empresas de telecomunicações e as 20 start-ups africanas de crescimento mais rápido empregam cerca de 300 000 pessoas. Por si só, o setor digital é claramente insuficiente para proporcionar educação e emprego aos 29 milhões de jovens que farão 16 anos todos os anos até 2030.
As grandes desigualdades nos mercados de trabalho limitam o potencial da transformação digital criar empregos de qualidade. O défice no acesso e na capacidade digitais manifesta-se em três dimensões inter-relacionadas: espacial, social e de competitividade:
A concentração da economia digital nas grandes cidades do continente aumenta o desfasamento espacial entre as oportunidades de emprego e a população. Embora cerca de 70% dos jovens africanos (ou seja, 1,4 mil milhões de pessoas) residam em áreas rurais, apenas 25,6% da população rural africana tem acesso à internet, por comparação com 35,2% na Ásia e 40,1% na América Latina (Gallup, 2019).
O setor informal continua a ser a principal porta de entrada para os mercados de trabalho para a grande maioria da população africana em idade ativa. É o caso de 75% dos licenciados entre os 15 e os 29 anos e de 88% das mulheres. Os trabalhadores informais fazem pouco uso das tecnologias digitais: apenas 16% dos trabalhadores por conta própria utilizam regularmente a Internet, por comparação com 58% de pessoas por conta doutrem.
Apesar do grande número de empreendedores em fase inicial em todo o continente, o ecossistema de financiamento permanece frágil. Os empreendedores de elevado potencial confrontam-se com um ambiente regulamentar insuficiente para desenvolver as suas atividades e inovar. O que compromete a competitividade do setor privado, em especial entre as micro, pequenas e médias empresas.
A maior parte das futuras oportunidades de emprego será proveniente de canais indiretos e não através do emprego direto nos setores digitais. O real potencial de criação de emprego em grande escala reside na disseminação de inovações digitais por parte das empresas líderes ao resto da economia. O papel dos governos é criar um ambiente que permita aos muitos atores do setor privado beneficiar da digitalização. A disseminação de inovações digitais a toda a economia permitirá ao setor privado criar mais emprego.
Embora muitos países africanos disponham de estratégias de digitalização, estas centram-se, em geral, apenas no setor digital. A maioria das estratégias visa alargar a cobertura das redes de infraestruturas de comunicação, promover polos e clusters tecnológicos e implementar reformas regulamentares para atrair empresas líderes. Estão orientadas apenas para setores específicos e tendem a ignorar o potencial de utilização da digitalização para transformar os setores não digitais.
As novas estratégias de digitalização podem colmatar as lacunas espaciais, sociais e de competitividade no mercado de trabalho e transpor as soluções digitais para a economia não digital (Figura 4). Para abordar estas lacunas, o relatório recomenda que os decisores políticos prestem especial atenção a três conjuntos de políticas: i) disseminar as inovações digitais para além das grandes cidades, ii) ajudar os trabalhadores informais a tornarem-se mais produtivos, e iii) capacitar as empresas para a competitividade digital. Do Capítulo 1 ao Capítulo 7, o relatório analisa um vasto leque de políticas que podem colmatar as lacunas das estratégias atuais, a fim de criar empregos de qualidade nas cinco regiões africanas.
Colmatar a lacuna espacial: ligar as cidades intermédias e disseminar as inovações digitais para o desenvolvimento rural
A redução das desigualdades espaciais constitui uma política eficiente para dar resposta às dimensões inter-relacionadas do fosso digital de África, incluindo as desigualdades socioeconómicas e de género no acesso a ferramentas digitais. A Figura 5 compara as desigualdades no acesso à utilização do telemóvel e da internet. Por um lado, os grupos vulneráveis nas áreas rurais e nas pequenas cidades têm muito menor acesso a oportunidades digitais do que nas grandes cidades. Por exemplo, somente 17% dos trabalhadores por conta própria que vivem em áreas rurais utilizam a internet, por comparação com 44% nas áreas urbanas (Afrobarómetro, 2019). Por outro lado, a inovação digital concentra-se em muito poucos lugares: apenas cinco cidades africanas acolhem quase metade das start-ups mais dinâmicas: Cidade do Cabo (12,5%), Lagos (10,3%), Joanesburgo (10,1%) e Nairobi (8,8%) e Cairo (6,9%) (Comissão da UA/OCDE, 2019). Além disso, 85% dos fundos de capital de risco para as start-ups em África concentraram-se em apenas quatro países, embora o montante dos fundos tenha aumentado sete vezes entre 2015 e 2019.
O alargamento das tecnologias digitais às áreas remotas pode ser eficaz em termos de custos. A melhoria dos serviços de extensão agrícola e a ligação das cadeias de fornecimento entre zonas rurais e urbanas podem gerar grandes benefícios no combate às bolsas de pobreza e à informalidade nas áreas rurais. Um exercício de avaliação da situação realçou que o foco das designadas Tecnologias Agrícolas Disruptivas (ou seja, Agritech) em África vai desde o aumento da produtividade agrícola (32%) à melhoria das ligações de mercado (26%) e, em menor medida, à análise de dados (23%) e à inclusão financeira (15%) (Kim et al., 2020). Mais de 83% destas soluções inovadoras de tecnologia agrícola não exigem uma conectividade elevada e podem funcionar com uma conectividade intermédia.
O desenvolvimento das infraestruturas de banda larga nas cidades intermédias pode ser de grande interesse, uma vez que 73% dos africanos continuarão a viver em cidades intermédias e em áreas rurais em 2040. Na África Central, apenas 5% das cidades intremédias estão a menos de dez quilómetros da rede terrestre de fibra ótica de alta velocidade, enquanto na África Ocidental esse valor é de 20%. As cidades intermédias podem atuar como centros de transmissão que servem o interior rural, reforçam as ligações rurais-urbanas e impulsionam a transformação rural. São necessárias políticas baseadas na localização para distribuir eficazmente os custos das inovações digitais e reforçar a competitividade regional para além das grandes cidades. Nas cinco regiões de África, as políticas baseadas na localização podem articular políticas setoriais a nível local para explorar o potencial subutilizado.
O acesso universal às tecnologias de comunicação e aos serviços de internet depende, em parte, de preços acessíveis. Somente 17% da população de África pode pagar um gigabyte de dados, por comparação com 37% na América Latina e Caraíbas e 47% na Ásia. Os custos são mais baixos no Norte de África e mais elevados na África Central.
Os governos podem tornar os preços acessíveis através de políticas que: i) criam novas alianças público-privadas para promover a conectividade rural, ii) melhoram a utilização dos Fundos de Serviço e Acesso Universais (USAF) e iii) asseguram uma concorrência leal entre os operadores de telecomunicações. Na Argélia, no Gana, no Quénia e na Nigéria, o setor público estabeleceu uma parceria com as empresas de telecomunicações móveis e com os fornecedores de equipamentos de telecomunicações para oferecer serviços móveis de banda larga rentáveis às suas populações rurais. Para melhorar as redes de banda larga nas áreas rurais, o Malawi e quatro outros países da África Austral testaram com sucesso a realocação de bandas de espetro livres, anteriormente utilizadas pela radiodifusão televisiva, para a transmissão de internet a longas distâncias (ver Capítulo 3). Embora 37 países africanos tenham criado os USAFs, uma avaliação recente concluiu que USD 408 milhões, ou 46% dos fundos arrecadados, estavam ainda por utilizar no final de 2016 (Thakur e Potter, 2018). O Benim, o Gana e o Ruanda utilizam corretamente os seus USAFs, orientando-os para programas de aquisição de competências destinados a mulheres empreendedoras.
Os governos têm de identificar e apoiar as inovações digitais mais promissoras para o desenvolvimento rural. As start-ups Agritech e relacionadas com dados estão a aumentar em todo o continente (Tabela 2). Os governos podem colaborar com as empresas tecnológicas para disseminar as melhores práticas agrícolas. As novas tecnologias, como os contratos inteligentes, as soluções de pagamento em tempo real e tecnologias de livro-razão distribuído (também conhecidas como “blockchain”), podem transformar radicalmente o setor agrícola e contribuir para dar resposta aos desafios específicos dos pequenos agricultores. Outras inovações promissoras para o desenvolvimento agrícola incluem modelos de economia partilhada e ferramentas digitais para os direitos fundiários.
Colmatar a lacuna social: fornecer competências digitais aos trabalhadores e preparar os mercados de trabalho para a transformação digital
Até 2040, os trabalhadores independentes e familiares representarão 65% do emprego em África se as tendências atuais se mantiverem. O seu número poderá aumentar 163%, atingindo 529 milhões de pessoas em 2040, comparativamente a cerca de 325 milhões de pessoas em 2020. Mesmo no cenário mais otimista em que os setores da indústria transformadora e digital se expandam consideravelmente, é provável que o trabalho independente continue a ser o principal pilar para a maioria dos jovens de África. Uma parte significativa da força de trabalho jovem do continente está fora dos sistemas de ensino e formação, está desempregada ou a trabalhar no setor informal. As políticas devem ajudá-los a adotar a transformação digital e proporcionar-lhes proteção social.
Para que a digitalização beneficie os trabalhadores informais e os trabalhadores independentes, é necessário proporcionar oportunidades crescentes de aprendizagem ao longo da vida, assim como o de desenvolvimento de competências. Em Marrocos, a Federação de Tecnologias da Informação, das Telecomunicações e de Externalização procura impulsionar a empregabilidade no setor das tecnologias da informação, mediante a criação de cursos de formação e de certificados de qualificação profissional em parceria com a Agência Nacional para a Promoção do Emprego e das Competências. Em maio de 2018, o Facebook lançou o NG_HUB em Lagos, em colaboração com a Co-creation Hub, para proporcionar a 50 000 jovens nigerianos competências para o desenvolvimento de negócios próprios e promover uma comunidade de aprendizagem mútua e sólida de empreendedores (Oludimu, 2018). Outras iniciativas interessantes centram-se no ensino e na formação técnica e profissional para mulheres. É o caso da Women and Digital Skills (Gana), do W.TEC (Nigéria) e do WeCode (Ruanda). Os capítulos regionais do presente relatório fornecem pormenores sobre outras iniciativas. Por exemplo, no Norte de África, as políticas de colaboração triangular entre governos, universidades e o setor privado estão a facilitar a criação de polos tecnológicos e centros de incubação para o desenvolvimento de competências (ver Capítulo 6).
O surgimento de novas formas de trabalho independente através da utilização de plataformas eletrónicas e de aplicações digitais insta à melhoria dos quadros regulamentares e dos regimes de proteção social, a fim de evitar condições de trabalho precárias. Na África do Sul, por exemplo, o número de trabalhadores de serviços pontuais está a crescer mais de 10% ao ano e poderá chegar a milhões de pessoas nas próximas décadas. Dados mundiais de 75 países entre 2015 e 2017 sugerem que os trabalhadores de serviços pontuais enfrentam, com frequência, condições de trabalho precárias, nomeadamente receitas baixas e imprevisíveis e uma proteção social deficiente. As políticas devem apoiar ações coletivas para ajudar a melhorar a regulamentação do trabalho das plataformas. Um exemplo desta ação verifica-se no Quénia, onde um grupo de trabalhadores online se reuniu para criar uma associação em 2019. A definição de normas internacionais e a promoção da certificação de uma conduta empresarial responsável das principais empresas de plataformas poderiam também ajudar a eliminar as práticas desleais e a responsabilizar estas plataformas, sem pôr em risco esta opção de meio de subsistência para os trabalhadores locais.
Colmatar a lacuna da competitividade: capacitar as start-ups e as PME africanas para competir e inovar na era digital
As empresas africanas têm dificuldade em modernizar e inovar na era digital. Atualmente, em África, apenas 17% dos empreendedores numa fase inicial esperam criar pelo menos seis postos de trabalho, o que representa a percentagem mais baixa do mundo. Isto, apesar de a população africana ter a maior taxa de empreendedorismo do mundo, representando cerca de 22% da força de trabalho (BAfD/OCDE/PNUD, 2017). Não obstante a existência de ideias empresariais promissoras, muitos empreendedores em fase inicial enfrentam obstáculos na obtenção de empréstimos nos sistemas bancários locais. Somente 5,4% do total de fundos angariados destina-se a start-ups com menos de cinco anos. As start-ups dirigidas por mulheres recebem apenas 2% do financiamento, embora se encontrem mais mulheres empreendedoras em África do que em outras regiões do mundo1.
Os governos podem ajudar as empresas dinâmicas a tirar partido das oportunidades comerciais disponibilizadas pela tecnologia digital, a facilitar o registo da propriedade intelectual e a melhorar o acesso ao financiamento para as jovens start-ups. As principais áreas em que os Governos podem prestar apoio são as seguintes:
Uma adoção digital mais forte aumentará o crescimento e a resiliência das empresas, especialmente se as políticas também incentivarem a difusão da inovação digital entre as PME (Figura 6). Por exemplo, os governos precisam de resolver estrangulamentos no comércio electrónico transfronteiriço, apoiando os pagamentos electrónicos internacionais, assim como as entregas, as normas e a certificação transfronteiriças. As empresas podem tornar-se mais competitivas através do reforço da sua presença online e dos seus serviços pós-venda. Os empreendedores africanos podem utilizar a conectividade digital para entrar em novos nichos de mercado. Um exemplo é o rápido crescimento online de Nollywood da Nigéria, uma indústria cinematográfica que emprega cerca de 1 milhão de pessoas.
Os governos podem incentivar os empreendedores a registar a propriedade intelectual através da racionalização dos procedimentos de candidatura, da redução do custo do registo da propriedade intelectual e da adaptação dos mecanismos de aplicação. Por exemplo, as taxas de registo de patentes no Quénia são 13,3 vezes o seu PIB per capita (a proporção é de 10,2 no Senegal e de 7,9 na Etiópia), em comparação com 0,4 na Malásia.
A melhoria dos métodos de avaliação de riscos, dos programas de aceleração para empreendedores, dos contratos públicos e dos mecanismos de garantias públicas pode aumentar o financiamento disponível para as start-ups locais em todos os países. Os países com um fundo soberano devem considerar a criação de pequenos fundos de capital de risco no âmbito das suas estruturas de investimento para apoiar o desenvolvimento dos ecossistemas de start-ups e de PMEs. Os exemplos incluem o FSDEA (Fundo Soberano de Angola) em Angola, o fundo Okoumé Capital no Gabão e o fundo Teranga Capital no Senegal.
Sem uma maior coordenação regional e continental, as estratégias nacionais não alcançarão a transformação digital. A ascensão das tecnologias digitais coloca desafios novos e complexos aos reguladores a nível nacional, incluindo a tributação na era digital, a segurança digital, a privacidade, a proteção dos dados pessoais e os fluxos de dados a nível transfronteiras. A rápida evolução das tecnologias, o seu alcance mundial e a sua natureza transfronteiriça – à qual os governos devem responder com quadros regulamentares e mecanismos de aplicação “adequados” – ampliam estes desafios (OCDE, 2019). A maioria das estratégias nacionais visa transformar um país num “núcleo digital regional”, mas não dá prioridade à cooperação regional e continental. As agências reguladoras nacionais não podem fazer face aos desafios relacionados com a tecnologia de forma isolada. Se os governos não resolverem as questões aos níveis regional e continental, poderão não ser capazes de concretizar o potencial pleno da transformação digital tanto para as empresas africanas como do ponto de vista da criação de emprego. Atualmente, somente 28 países em África dispõem de legislação sobre proteção de dados pessoais implementada, ao passo que 11 adotaram legislação substantiva em matéria de cibercriminalidade. A Serianu (2017) estima que o custo da cibercriminalidade em África foi de cerca de USD 3,5 mil milhões em 2017.
O inquérito de peritos realizado conjuntamente em 2020 pela CUA e pela OCDE, para efeitos do presente relatório, identificou três áreas de cooperação regional e continental, que podem ajudar à criar mais e melhores empregos (Figura 7):
garantir serviços de roaming intra-africano a preços acessíveis
melhorar a cooperação continental no domínio da segurança digital.
A resolução destas questões aos níveis regional e continental permitirá que os governos de África aproveitem os benefícios mais abrangentes das suas estratégias de digitalização. Por exemplo, a expansão das infraestruturas físicas deve ser acompanhada por políticas regulamentares que promovam o acesso à banda larga a preços acessíveis. Acelerar a cooperação em matéria de serviços de roaming, de regulamentação de dados e segurança digital aumentará o comércio intra-africano e a integração produtiva. Os progressos nestas três áreas prepararão o caminho para alcançar um mercado único digital pan-africano até 2030 e para implementar a Estratégia de Transformação Digital de África da Comissão da União Africana (DST) 2020-2030. A DST visa uma “sociedade e economia digitais integradas e inclusivas em África que melhorem a qualidade de vida dos cidadãos de África, reforcem o atual setor económico, permitam a sua diversificação e desenvolvimento e assegurem a propriedade continental de África enquanto produtor e não apenas como um consumidor na economia mundial”.
Bibliografia
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Nota
← 1. A nível mundial, as taxas de atividade empresarial total mais elevadas das mulheres registam-se na África Subsariana (entre 21,8% e 25,0 %), seguida pela América Latina e Caraíbas (17,3%), ao passo que a taxa média mundial é de 10,2%. Na Nigéria, quase quatro em cada dez mulheres em idade ativa exercem uma atividade empresarial em fase inicial (40,7%).