2. Necessidades de atenção à saúde e organização da atenção primária à saúde no Brasil

O Brasil é um país de renda média-alta, com uma população de 211 milhões de habitantes. O país está dividido em 26 estados e um Distrito Federal, com 5.570 municípios. Os estados são ainda organizados em cinco regiões geopolíticas: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. A saúde é direito universal de toda a população e de responsabilidade do Estado desde a aprovação da nova Constituição brasileira em 1988, a qual instituiu o Sistema Único de Saúde (SUS) em 1990. A gestão e o financiamento do SUS são compartilhados entre o Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais de saúde. No sistema de atenção à saúde descentralizado, os municípios têm liberdade para organizar as equipes de saúde da família da APS de acordo com as necessidades da população e características geográficas.

O Brasil fez dos investimentos em APS uma prioridade para abordar as disparidades no acesso aos cuidados e melhorar os desfechos de saúde. A Estratégia de Saúde da Família, um dos maiores programas de APS de base comunitária em todo o mundo, lançada em 1994, teve sucesso em aumentar a cobertura populacional e aprimorar indicadores de saúde. A expansão da Estratégia de Saúde da Família contribuiu para melhorias mensuráveis em termos de taxas de mortalidade infantil, saúde materna, vacinação e hospitalização evitável. No entanto, a APS no Brasil enfrenta uma série de desafios decorrentes de seu vasto território e geografia complexa, os quais têm dificultado o atendimento das necessidades da população que vive em comunidades vulneráveis e remotas. A expansão da APS tem sido marcada por grandes disparidades entre os estados e municípios, relacionadas principalmente à escassez de mão de obra e desequilíbrios na distribuição de médicos. Também há aumento no número de pacientes idosos e prevalência crescente de doenças crônicas não transmissíveis, que exigem prevenção eficaz e uma APS mais forte para gerenciar melhor o fardo das condições crônicas.

Este capítulo descreve o sistema de APS no Brasil. Começa analisando o contexto socioeconômico em que o sistema opera, bem como descrevendo a governança do setor de APS. Em seguida, o capítulo examina as necessidades de atenção à saúde da população brasileira e, por fim, apresenta a organização do setor de APS.

O Estado brasileiro está dividido em 26 estados e o Distrito Federal, com 5.570 municípios. Os estados e o Distrito Federal também estão agrupados em cinco regiões: Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul, as quais são utilizadas principalmente para fins estatísticos e para definir a distribuição dos recursos federais. Os municípios recebem o status de entes federados, no mesmo nível dos estados. Embora haja grande heterogeneidade na área geográfica e na população, bem como nos indicadores sociais e econômicos, entre as jurisdições subnacionais, todos os municípios brasileiros gozam do mesmo status jurídico (OCDE/UCLG, 2019[1]). Em 2015, 17 municípios tinham mais de 1 milhão de habitantes (22% da população), ao mesmo tempo em que cerca de 44% dos municípios possuíam menos de 10 mil habitantes. O Brasil também possui 438 regiões de saúde, que são compostas por municípios e são muito heterogêneas em sua demografia, indicadores socioeconômicos e estruturas de governança (Ministério da Saúde, 2020[2]).

No passado recente, o crescimento econômico e os programas sociais de transferência de renda foram as principais forças para a geração de significativa desigualdade e redução da pobreza no Brasil. No entanto, as desigualdades de renda têm aumentado de novo nos últimos anos e há grandes disparidades regionais em prosperidade e crescimento em todo o país, com as regiões Norte e Nordeste se saindo piore do que as regiões Sul e Sudeste. Grandes desigualdades em várias dimensões afetam o status da saúde.

O Brasil teve forte crescimento econômico combinado com notável progresso social nas últimas duas décadas. Em 2010, o PIB do Brasil cresceu 7,5%, em comparação com cerca de 3% nos países da OCDE. Atualmente, os benefícios sociais chegam a mais de 15% do PIB e são caracterizados por uma focalização precária, se forem incluídas as pensões. Como resultado, as taxas de pobreza foram reduzidas de 41% da população em 2001 para 19% em 2019.1 Programas públicos contribuíram para a redução das taxas de pobreza (OCDE, 2020[3]). Estudos recentes mostram que o programa Bolsa Família sozinho reduziu as taxas de pobreza em 15% (Ferreira de Souza, Osorio and Paiva e Sergei Soares, 2019[4]).

Esses avanços também geraram redução na desigualdade de renda. De 2001 a 2011, o GINI da desigualdade de renda no Brasil caiu continuamente de cerca de 58 para 52. No entanto, o indicador voltou a subir nos últimos anos, para em torno de 53, e continua sendo um problema significativo no Brasil. Atualmente, os 10% mais ricos da população possuem uma renda que supera em quatro vezes os rendimentos dos 40% mais pobres (OCDE, 2020[3]).

As desigualdades regionais são outro desafio crucial no Brasil. A distribuição de renda nas regiões brasileiras é altamente desigual. A renda média no estado do Maranhão, no Nordeste, é inferior à metade da média nacional. O oposto é verdade em relação à pobreza. As taxas de pobreza nas regiões Norte e Nordeste são de três a quatro vezes maiores do que nas regiões Sudeste, Centro-Oeste e Sul (Imagem 2.1). Grandes disparidades regionais também existem no que diz respeito à informalidade e analfabetismo no mercado de trabalho, que são três a quatro vezes mais comuns nas nos estados da região Nordeste do que na relativamente rica região Sudeste (OCDE, 2020[3]). Como o contexto social e econômico influencia fortemente os resultados de saúde, as disparidades econômicas entre as regiões estão refletidas no status de saúde e seus resultados.

Os princípios e a estrutura do sistema de atenção à saúde brasileiro foram concebidos em 1988, após a aprovação da nova Constituição brasileira que estabeleceu a saúde como direito universal para toda a população. A saúde tornou-se responsabilidade do Estado com a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS está estruturado em torno de três prioridades (Massuda et al., 2020[6]):

  • O direito universal à atenção à saúde integral em todos os níveis de complexidade (primário, secundário e terciário).

  • Descentralização com responsabilidades atribuídas aos três níveis de governo: federal, estadual e municipal

  • Participação social na formulação e acompanhamento da implementação das políticas de saúde por meio dos conselhos de saúde federais, estaduais e municipais.

A gestão do SUS é dividida em três diferentes níveis de governança: Ministério da Saúde, secretarias estaduais e municipais de saúde. No âmbito federal, o Ministério da Saúde define os objetivos gerais do SUS e define o desenvolvimento de políticas, o planejamento do financiamento, a auditoria e o controle das políticas e serviços de saúde relacionados ao SUS. É responsável pela coordenação geral das prioridades e ações nacionais definidas no Plano Plurianual 2020-23 e no Plano Nacional de Saúde (PNS) 2020-23. Os objetivos relacionados à saúde no Plano Plurianual 2020-23 são a expansão da cobertura e resolutividade da APS, melhorando a prevenção e fortalecendo a integração entre os serviços de atenção à saúde. O PNS 2020-23 elabora os objetivos da política de saúde do SUS, com a definição de sete programas (Ministério da Saúde, 2020[7]):

  • Assistência farmacêutica no SUS

  • Serviços especializados de atenção à saúde

  • APS

  • Desenvolvimento científico, tecnológico e produtivo em saúde

  • Gestão e organização do SUS

  • Proteção, promoção e recuperação da saúde indígena

  • Vigilância de saúde

Na área da APS, o PNS 2020-23 está estruturado em torno de três prioridades. Em primeiro lugar, a expansão do acesso à APS e sua infraestrutura. Em segundo lugar, a melhoria na digitalização das unidades de APS, com melhor integração de dados e uso de prontuários médicos eletrônicos nas regiões Norte e Nordeste. Em terceiro lugar, o aumento da promoção e prevenção em saúde nos níveis de APS para abordar os fatores de risco para a saúde (por exemplo, nutrição e tabagismo) e encorajar a realização de exames de rastreio (por exemplo, citopatologia e mamografia). O PNS 2020-23 define 20 objetivos na área da APS, com metas específicas a atingir até 2023, como, por exemplo, o número de Equipes de Saúde da Família (tanto para a população geral como para a população de encarcerados), cobertura odontológica, consultas de pré-natal de gestantes, cobertura de exames de citopatologia e mamografia e qualidade de saúde mental (Tabela 2.1).

Os 26 governos estaduais, por meio de suas secretarias de saúde, são responsáveis pela governança e pela organização do sistema regional de saúde, coordenação de programas estratégicos e prestação de serviços de atenção à saúde especializados que não foram descentralizados para os municípios. Em nível local, 5.570 municípios, por meio de suas secretarias municipais de saúde, cuidam da gestão do SUS, incluindo cofinanciamento, coordenação de programas de saúde e prestação direta e contratação de serviços de saúde, incluindo serviços de APS (Massuda et al., 2020[6]).

O Pacto Interfederativo da Gestão Executiva permite que o SUS tenha um funcionamento dinâmico por meio de acordos entre cada ente federativo, com a constituição dos seguintes conselhos ou comissões:

  • O Conselho Nacional de Secretários de Saúde (CONASS) reúne os secretários de saúde dos estados e do Distrito Federal com o objetivo de implantar os princípios, legislações e diretrizes do SUS nas ações e serviços de saúde. O CONASS também permite a troca de experiências e informações entre os Secretários de Estado.

  • O Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (CONASEMS) representa as secretarias municipais de saúde, com o objetivo de orientar os gestores de saúde na prestação dos serviços de APS.

  • O Conselho Estadual de Secretarias Municipais de Saúde (COSEMS) reúne secretários municipais de saúde para discutir e coordenar questões estratégicas de saúde.

A Comissão Intergestores Tripartite (CIT) e a Comissão Intergestores Bipartite (CIB) são órgãos importantes para o desenvolvimento de estratégias do SUS e alocação de recursos por meio de consenso coletivo das diferentes esferas de governo (ver Quadro 2.1). O Conselho Nacional de Saúde, órgão colegiado composto por representantes do governo, prestadores de serviços, profissionais de saúde e usuários, também está envolvido na formulação das prioridades e ações da APS. A revisão do sistema de saúde da OCDE fornece descrição detalhada desses órgãos de governança (OCDE, 2021[8]).

Desde a criação do SUS, o Brasil realizou progressos substanciais para alcançar a cobertura universal de saúde. Praticamente toda a população está coberta por benefícios e proteção financeira iguais dentro do setor de saúde pública. Desde o seu início, um forte foco do SUS foi fortalecer o papel da APS para reduzir as desigualdades na saúde e melhorar o acesso aos serviços, mas também se distanciar do sistema de saúde que era historicamente muito centralizado nos hospitais.

O sistema público de saúde é financiado por receitas fiscais e contribuições sociais de todos os três níveis de governo. Por lei, o governo federal é obrigado a gastar 15% da receita corrente líquida com saúde, os estados 12% de sua receita total e os municípios 15% (Massuda et al., 2020[9]). Há relatos de que, nos últimos 30 anos, a parcela do financiamento municipal aumentou para atingir quase um quarto de suas próprias receitas totais com saúde (Massuda et al., 2020[9]).

No SUS, o governo federal tradicionalmente financia cerca de um terço dos custos totais de APS (33%), com o restante financiado predominantemente por municípios (61%) (Ministério da Saúde/Fundação Oswaldo Cruz, 2018[10]). A participação dos estados é a menor, com poucos casos em que esses cofinanciam políticas de APS.

Analisando a composição dos gastos gerais com saúde em um contexto internacional, o Brasil parece dar maior prioridade aos gastos com APS do que muitos países da OCDE. Em 2019, o Brasil destinou cerca de 16% de seus recursos financeiros para atendimento ambulatorial geral, atendimento odontológico, cuidados curativos domiciliares e atividades preventivas (Imagem 2.2).

Em 2020, o orçamento destinado à APS pelo governo federal foi de R$ 20,9 bilhões, ante R$ 17,5 bilhões em 2019 (CONASEMS, 2020[11]). No total, o governo federal aumentou seu orçamento de APS em cerca de R$ 3,4 bilhões entre 2019 e 2020.

Desde o início do SUS, o Brasil fez avanços significativos ao progredir na maioria dos indicadores relativos à saúde da população em geral. O Brasil, entretanto, está passando por uma profunda transição demográfica. Como resultado da queda nas taxas de fertilidade e mortalidade, a população brasileira está envelhecendo de forma acelerada. O rápido envelhecimento da população e o aumento dos fatores de risco para a saúde no Brasil (notadamente as taxas de sobrepeso crescentes) andam de mãos dadas com aumento da prevalência de doenças crônicas não transmissíveis, que exige prevenção eficaz e APS mais forte para melhor administrar o ônus das condições crônicas.

A expectativa de vida ao nascer no Brasil aumentou rapidamente nas últimas décadas, mas ainda está cinco anos abaixo da média da OCDE de 81 anos, porém acima da média da ALC de 75,9 anos (ver Imagem 2.3). No Brasil, a expectativa de vida ao nascer aumentou em mais de 5 anos entre 2000 e 2018 (passando de 70,2 para 75,6 anos), em comparação com 4 anos nos países da OCDE. A lacuna de longevidade entre o Brasil e outros países da OCDE diminuiu de 6,5 para 5 anos.

As taxas de mortalidade infantil diminuíram de 30,4 mortes por 1.000 nascidos vivos em 2000 para 13,2 mortes por 1.000 nascidos vivos em 2017. Apesar dessa redução, a taxa de mortalidade infantil no Brasil ainda está acima da média da OCDE de 3,5 mortes por 1000 nascidos vivos. O mesmo se aplica às taxas de mortalidade materna no Brasil, que diminuíram para 60 mulheres por 100.000 nascidos vivos em 2017 (redução de 13 pontos percentuais desde 2000), embora ainda maior do que a média da OCDE de 8 por 100.000 nascidos vivos, mas inferior à média da ALC de 83 (OCDE/The World Bank, 2020[13]).

O Brasil, assim como outros países da OCDE, está passando por uma transição demográfica caracterizada por uma mudança de altos níveis de mortalidade e fertilidade para níveis mais baixos. A taxa de fertilidade caiu de 2,9 nascimentos por mulher em 1990 para 1,7 nascimentos por mulher (OCDE, 2021[14]). A combinação da redução de taxas de mortalidade (resultando no aumento da expectativa de vida) e taxas de fertilidade causa rápido envelhecimento da população. A parcela da população com mais de 65 anos de idade aumentou 65% na última década, passando de 5,8% em 2000 para 9,5% em 2019 (Imagem 2.4). Em toda a OCDE, a proporção aumentou 32% no mesmo período, passando de 13,1 em 2000 para 17,4 em 2019.

Portanto, projeta-se que o índice de dependência (o número de pessoas em idade ativa para cada pessoa com 65 anos ou mais) diminua substancialmente até 2050, próximo ao nível da OCDE. O rápido envelhecimento populacional tem impacto importante na saúde da população no Brasil, pressionando o sistema de atenção à saúde e a economia.

Diversos fatores de risco para a saúde são preocupantes no Brasil, incluindo principalmente o excesso de peso. O excesso de peso é importante fator de risco para várias doenças crônicas não transmissíveis, incluindo diabetes, doenças cardiovasculares e certos tipos de câncer. Embora o sobrepeso no Brasil esteja atualmente abaixo da média da OCDE, a tendência é que ele aumente cada vez mais. Em 2016, as estimativas mostram que 56,5% dos adultos no Brasil estavam com sobrepeso, próximo à média da OCDE de 58,4%. No entanto, o Brasil apresentou a quarta maior variação no excesso de peso entre 2006 e 2016, com crescimento de 13% na última década, em comparação com aumento de 8% em toda a OCDE. Esta é a terceira maior taxa de crescimento, atrás do Japão, Costa Rica e Coreia (Imagem 2.5).

As taxas de excesso de peso em crianças no Brasil também estão aumentando rapidamente. Em 2016, o Brasil tinha uma taxa de sobrepeso infantil de 28%, muito próxima da média de 28,5% dos países da OCDE. No entanto, o Brasil passou por um aumento de 27% entre 2006 e 2016, superior ao aumento de 15% na OCDE. O aumento nas taxas de excesso de peso nas crianças significa maior risco de doenças cardiovasculares ou diabetes durante a idade adulta, pressionando ainda mais o setor de APS.

No presente momento, quando comparado aos países da OCDE, a diabetes já tem uma carga maior de doença no Brasil. Níveis elevados de açúcar no sangue podem levar ao desenvolvimento de diabetes. A glicemia em jejum (FBG) contribui para diagnosticar e monitorar a diabetes. No Brasil, 8,4% da população tinha FBG acima do recomendado em 2014, superior à média de 6,7% nos países da OCDE. É importante ressaltar que, entre 2004 e 2014, o Brasil registrou um dos maiores aumentos em sua população com FBG acima do recomendado, com aumento de 15,3% (Imagem 2.6). Apenas a Turquia, México, Chile, Costa Rica e Colômbia tiveram aumentos maiores entre os países da OCDE, evidenciando uma tendência preocupante no Brasil.

De maneira geral, com o aumento dos fatores de risco para a saúde, é crescente a predominância de doenças crônicas não transmissíveis no Brasil. Em 2017, quatro doenças crônicas não transmissíveis dominaram as causas de mortalidade no Brasil: doenças do aparelho circulatório (27%), neoplasias (17%), doenças respiratórias crônicas (12%), causas externas (12%) e diabetes (5%), em comparação com apenas duas em 1990 (doenças cardiovasculares com 27,8% e neoplasias com 11,4%).

Existem grandes desigualdades regionais no status de saúde em todo o Brasil, onde os municípios mais vulneráveis apresentam consistentemente desfechos de saúde piores do que a média nacional. Embora a taxa de mortalidade infantil no Brasil tenha diminuído de 47,1 para 12,4 por 1.000 nascidos vivos entre 1990 e 2019, existem grandes diferenças na magnitude dessa redução nas regiões do Brasil. A região Nordeste apresentou a queda mais significativa, de 80%, no período, enquanto o menor grau de redução ocorreu nas regiões Centro-Oeste e Norte (redução de 62%) (Szwarcwald et al., 2020[16]).

Outra ilustração das diferenças regionais em saúde pode ser vista em termos de internação evitável por doenças que poderiam ser tratadas nos ambientes de APS. A proporção de internações por doenças que poderiam ser tratadas de maneira mais eficaz no cenário da APS varia de 24% na região Sul a 40% na região Norte (Imagem 2.7). Essas diferenças regionais indicam que algumas áreas remotas e vulneráveis requerem mais atenção do que outras para melhorar a qualidade da APS.

Há também desigualdades significativas nas taxas de vacinação contra febre amarela nos estados brasileiros onde tal vacinação tenha sido recomendada, variando, em 2018, de 21,8% no Sergipe a 100% no Distrito Federal e Roraima (a média nacional para todos os estados onde a vacina é recomendada é de 64,1%).

As desigualdades regionais de saúde agravaram o impacto da pandemia de COVID-19 e provavelmente exacerbarão as desigualdades em saúde no futuro. A população mais carente e vulnerável tem maior probabilidade de ser afetada pelo vírus COVID-19, não apenas por causa das condições precárias de vida e trabalho, mas também porque é mais provável que sofra de comorbidades e fatores de risco da COVID-19. As taxas de mortalidade no Estado do Amazonas foram quatro vezes superiores à média nacional, principalmente entre os indígenas (Pires, Carvalho and Rawet, 2020[17]). Quadro 2.2 apresenta o impacto da COVID-19 na saúde no Brasil.

No Brasil, os 5.570 municípios cuidam da gestão, organização e prestação de APS. O programa Estratégia de Saúde da Família lançado em 1994 foi notável. Baseado em equipes multiprofissionais de APS (denominadas Equipes de Saúde da Família), a expansão da Estratégia de Saúde da Família levou à melhoria na cobertura e nos desfechos de atenção à saúde. A priorização pelo SUS no que se refere à APS permitiu contato mais fácil com os serviços de saúde nas comunidades.

Desde a implementação, em 1994, do programa federal denominado Estratégia de Saúde da Família (ESF), também conhecido como Programa Saúde da Família, os 5.570 municípios têm sido os principais responsáveis pela gestão e prestação de APS. Com financiamento da União, os municípios têm liberdade para organizar as equipes de saúde da família de acordo com as necessidades da população e características geográficas.

A ESF é um programa descentralizado com o objetivo de expandir o sistema de APS no Brasil para uma atenção à saúde mais coordenada, abrangente e contínua. O objetivo geral era garantir o acesso universal aos serviços de atenção à saúde para todos os brasileiros sob a organização geral do SUS (Macinko and Harris, 2015[20]; Castro et al., 2019[21]). A ESF passou a ser o principal mecanismo de ampliação da cobertura dos serviços de APS no Brasil. A ESF resultou em duas grandes mudanças. Primeiro, uma mudança nas prioridades, do tratamento de pacientes com doenças para a prestação de cuidados abrangentes e prevenção de doenças por meio da promoção ativa da saúde. Em segundo lugar, uma mudança na governança, de estados para municípios, para permitir maior responsabilidade e mais colaboração entre os setores público e privado.

A ESF é financiada por meio de transferências federais, mas também inclui contribuições financeiras dos municípios. Conforme mencionado anteriormente, os municípios são os principais agentes financiadores de APS. Os municípios de menor porte (até 20 mil habitantes), onde não há outra oferta de serviços de atenção à saúde, gastam cerca de 60% de seu orçamento para a saúde com APS.

O SUS oferece serviços preventivos e de APS gratuitos. Os serviços que são cobertos publicamente são baseados em condições de saúde, procedimentos clínicos e não clínicos e grupos populacionais-alvo. A lista de serviços é gradualmente adaptada para refletir as mudanças na saúde da população. O tratamento e o controle das principais condições crônicas (como hipertensão e diabetes) foram adicionados à lista de serviços cobertos (OCDE, 2015[22]). O Ministério da Saúde negocia com as secretarias estaduais e municipais de saúde a definição de novos serviços de atenção à saúde a serem cobertos pelo SUS.

Espera-se que a APS da ESF seja o ponto de contato inicial para pacientes com novas necessidades de saúde, embora não funcione como “porta de entrada” e muitos brasileiros tenham acesso direto às especialidades ambulatoriais e hospitais. Por exemplo, a última Pesquisa sobre Informações de Saúde constatou que cerca de 50% da população diabética identificou unidades básicas de saúde como último contato com o sistema de saúde, 11% usaram unidades públicas especializadas em hospitais, 6% unidades públicas de urgência e 30% hospitais particulares ou clínicas (IGBE, 2020[23]).

Isso é diferente em muitos outros países da OCDE, como a Austrália, Canadá ou Reino Unido, onde os clínicos gerais atuam como a porta de entrada do sistema de saúde, já que o encaminhamento é necessário e obrigatório para o acesso a cuidados especializados e hospitalares (OCDE, 2020[24]).

Na APS, o setor privado atua de forma mais complementar, pois os planos de saúde oferecem principalmente serviços especializados e hospitalares. Porém, os planos de saúde do setor privado passaram a oferecer acesso aos médicos de família sem copagamento como alternativa às consultas especializadas (Massuda et al., 2020[9]).

Antes de 1994, o papel da APS e da promoção da saúde era limitado e os serviços eram prestados predominantemente em uma variedade de hospitais. Por ser um programa de APS de grande escala com base na comunidade, a ESF conta com equipes multiprofissionais denominadas Equipes de Saúde da Família (eSFs). Cada eSF é designada para uma área geográfica, cobrindo até 4.000 indivíduos localizados em áreas não sobrepostas. Isso ajuda as eSFs a considerarem os fatores sociais, econômicos e ambientais da área de abrangência. As eSFs são responsáveis pelo cadastramento de todas as famílias em sua área geográfica e, portanto, são projetadas para facilitar o acesso ao sistema de atenção à saúde (Massuda et al., 2020[9]).

Vários profissionais de saúde diferentes estão envolvidos na prestação da APS. A ESF inclui médicos, enfermeiros e até 12 agentes comunitários de saúde. Outros profissionais da APS, incluindo nutricionistas, farmacêuticos, assistentes sociais, psicólogos, obstetras, ginecologistas e profissionais de saúde pública podem fornecer suporte adicional, dependendo das necessidades locais. As equipes de saúde odontológica foram integradas às eSFs nos últimos anos para oferecer serviços de saúde bucal universais e gratuitos à população. Até 2019, existiam 43.234 Equipes de Saúde da Família e 27.564 Equipes de Saúde Odontológica em funcionamento em todo o Brasil (Imagem 2.9). A prática individual no Brasil está se tornando cada vez mais escassa, embora não haja registro oficial e relato dessa prática.

Esse modelo de prestação de serviços - baseado em equipe multidisciplinar - está bem alinhado com as abordagens modernas da APS, que cobrem vários profissionais com habilidades avançadas de trabalho em equipe (OCDE, 2020[24]). Tais modelos de APS baseados em equipes ou redes de prestadores foram relatados por 18 países da OCDE em 2018, incluindo a Austrália, Canadá, França, Suíça ou Estados Unidos.

As eSFs atuam em unidades básicas de saúde (UBS) ou outras unidades de APS denominadas clínicas, centros ou postos de saúde, podendo também receber apoio dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs). Os NASFs foram introduzidos em 2008 para fornecer suporte de uma a nove eSFs. Um NASF é composto por assistentes sociais e de saúde, incluindo, por exemplo, acupunturistas, assistentes sociais, profissionais de educação física, farmacêuticos, fisioterapeutas, ginecologistas e obstetras; médicos homeopatas; nutricionistas; pediatras ou psicólogos. Até 2019, existiam 4.487 NASFs em operação em todo o Brasil (ver também o Capítulo 4 para uma descrição detalhada dos NASFs). Em maio de 2021, existia, no Brasil, um total de 50.029 unidades de APS, incluindo, entre outros, UBS, Posto de Saúde e NASFs.

Em 2020, o governo introduziu nova classificação de 12 categorias de equipes de saúde (a Tabela 2.2 resume as várias equipes de saúde da família no Brasil).

A abrangência da atuação de uma eSF tem aumentado gradualmente nos últimos anos para prestar cuidados preventivos proativos e fornecer intervenções de saúde pública, incluindo, por exemplo, programas de imunização e de rastreamento (ver Capítulo 3). Os serviços incluem não apenas a atenção à saúde materno-infantil, mas também envolvem cuidados preventivos, além de controle e gestão de doenças crônicas não transmissíveis (Özçelik et al., 2021[25]). A ESF também vincula os pacientes a serviços sociais (como programas de transferência condicional de renda), serviços de água e saneamento, segurança pública e programas escolares (Massuda et al., 2020[9]).

Em 2019, 98% dos municípios já haviam adotado o modelo de Estratégia de Saúde da Família. Em 2019, existiam 43.223 equipes de saúde da família, 27.564 equipes de saúde odontológica e 4.487 postos de apoio à saúde da família (Imagem 2.9), prestando cuidados a mais de 127 milhões de pessoas (61% da população). O número de equipes de saúde da família e equipes de saúde odontológica aumentou 36% e 34%, respectivamente, na última década. Ao mesmo tempo, o número de NASFs mais do que triplicou no mesmo período (Imagem 2.9). Em maio de 2021, havia mais de 50.000 unidades de APS no Brasil, onde as equipes podem prestar serviços.

Existem fortes indícios que sugerem que a ESF oferece melhor acesso e qualidade do que outros postos e centros de saúde tradicionais (Massuda et al., 2020[9]). Em uma análise sistemática da literatura sobre o impacto da ESF no Brasil, Bastos et al. (2017) mostram que o aumento da cobertura de atenção à saúde por meio da expansão de ESF foi consistentemente associado à melhora da mortalidade infantil (Bastos et al., 2017[26]). Uma análise longitudinal usando dados agrupados mostra que o aumento de 10% na cobertura da ESF foi associado à redução de 4,5% na taxa de mortalidade infantil, todos os demais itens mantendo-se iguais (Macinko, Guanais and Marinho De Souza, 2006[27]).

Entre os adultos, a expansão da ESF foi associada a reduções nas internações por diabetes mellitus e problemas respiratórios (Guanais and MacInko, 2009[28]). Estimativas mostram que a ESF pode ter contribuído para um número estimado de menos 126 mil internações entre 1999 e 2002. Mais recentemente, Pinto e Giovanella (2018) mostram que a implantação da ESF estava associada à redução de 45% das taxas de internação padronizadas por 10.000 habitantes entre 2001 e 2016. A redução foi particularmente pronunciada em internações devido a asma, gastroenterite e doenças cardiovasculares e cerebrovasculares (Pinto and Giovanella, 2018[29]). A implantação da ESF também está associada positivamente a uma redução significativa no número de internações por insuficiência cardíaca e acidente vascular cerebral por 10.000 habitantes de 1998 a 2013 (De Fátima Barros Cavalcante et al., 2018[30]). Melhor prevenção de condições sensíveis à APS, maior acompanhamento de condições crônicas, diagnóstico aprimorado e acesso mais fácil a medicamentos explicam, em parte, a melhoria na qualidade da atenção à saúde.

Além de melhorar os desfechos de saúde por meio de melhor acesso ao atendimento, o SUS fez investimentos consideráveis para expandir a disponibilidade e os equipamentos das unidades de APS por meio do programa Requalifica. O programa realiza a construção, ampliação e reforma das instalações de APS, incluindo a construção das Unidades Básicas de Saúde Fluviais, proporcionando melhores condições de acesso e oferta de ações e serviços públicos de saúde. Também inclui ações voltadas à informatização da APS e à qualificação dos trabalhadores de APS (Ministério da Saúde, 2020[2]).

Embora essas sejam boas notícias, a expansão da ESF também foi marcada por grandes disparidades entre os estados e municípios (Andrade et al., 2018[31]). A expansão da ESF tem sido heterogênea entre os municípios, principalmente por causa dos desequilíbrios geográficos na oferta de médicos. A falta de médicos de APS em algumas cidades remotas tem sido uma das barreiras mais importantes para a expansão da ESF (Andrade et al., 2018[31]).

Com a implantação do Programa de Agentes Comunitários de Saúde (PACS), os agentes comunitários de saúde (ACS) passaram a ter papel fundamental no sistema de APS brasileiro. Os ACS são profissionais de saúde pública da linha de frente, geralmente membros das comunidades em que trabalham. Eles têm grande conhecimento sobre as necessidades da população e são fontes confiáveis de informações. A implementação da ESF expandiu o papel dos ACS, no centro da política de APS do país (Wadge et al., 2016[32]).

Os ACS são membros integrantes das ESF. Eles fornecem suporte abrangente de APS, incluindo rastreio clínico, apoio à gestão de doenças crônicas, triagem, imunizações, prestação de assistência pré- e pós-natal, promoção da saúde, determinantes sociais, participação da comunidade e dados domésticos (Wadge et al., 2016[32]). Espera-se que eles resolvam muitos problemas de baixo nível, como revisão de medicamentos para pacientes com doenças crônicas, e encaminhem questões mais complexas para médicos e enfermeiras da eSF. No ambulatório ou posto de saúde, o ACS também é responsável por organizar as salas de espera e consultas e oferecer sessões educacionais.

Cada ACS tem no máximo 150 famílias em uma área geográfica e cada família recebe pelo menos uma visita por mês de um ACS dedicado, independentemente das necessidades ou demanda. Os pacientes não podem escolher seu ACS. As visitas mensais permitem atividades de promoção da saúde e atendimento clínico básico, verificando se as prescrições foram preenchidas e se os pacientes estão tomando seus medicamentos regularmente, identificando fatores de risco para a saúde ou outros determinantes sociais, mas também coletando dados individuais e domiciliares (Wadge et al., 2016[32]). Os ACS também ajudam a coordenar os serviços de APS com os esforços de saúde pública.

Em 2020, mais de 250.000 ACS serviam 61% da população (Capítulo 5), ante 60.000 em 1998. O requisito mínimo para se tornar um ACS é o ensino médio, mas cerca de dois terços deles possuem educação superior. Os ACS são mais frequentemente recrutados dentro da sua própria comunidade. É uma profissão estável e respeitada e, como resultado, a rotatividade é baixa.

Um grande conjunto de indícios demonstra o impacto positivo dos ACS na satisfação do paciente e na educação sobre saúde, principalmente para grupos vulneráveis e de baixa renda (Wadge et al., 2016[32]) (Grossman-Kahn et al., 2018[33]). Os ACSs estão sendo essenciais para responder com eficácia às doenças pelo Zika vírus, fornecendo, por exemplo, conselhos de saúde e relatórios de incidência. Os ACS poderiam, assim, ter desempenhado papel mais importante no apoio à resposta à COVID-19. Até agora, indícios mostram que apenas cerca de 9% dos ACS receberam treinamento para controle de infecções e equipamento de proteção individual durante a pandemia. Eles não receberam guia claro sobre seu papel na resposta à COVID-19. A pandemia de COVID-19 revelou problemas de governança ligados ao setor de saúde, principalmente devido à falta de liderança e supervisão do governo federal. A comunicação de risco pelas autoridades federais também está sendo conflitante e confusa para a população e os trabalhadores de APS, sem coordenação geral (Lotta et al., 2020[34]).

No sistema de atenção à saúde descentralizado, os municípios são responsáveis pela organização, gestão e prestação dos serviços de APS. Em 2020, o governo federal repassou R$20,9 bilhões aos municípios, então responsáveis pela organização e prestação dos serviços de APS por meio da contratação de membros de eSF como servidores públicos. Como cada município define o nível de salários dos membros da equipe de saúde, há grandes variações salariais em todo o país (Massuda et al., 2020[6]).

Existem três tipos de contrato possíveis com o município:

  • Funcionários públicos: há servidores públicos contratados na forma de estatutários (são assalariados, têm cargo estável e há teto salarial);

  • Trabalhadores privados contratados por organizações sociais, ONGs privadas sem fins lucrativos (mas os indícios sugerem a existência de casos de corrupção em tais esquemas),

  • Trabalhadores privados contratados por ONGs de organizações sociais de propriedade do Governo.

O número de médicos de APS treinados está bem abaixo dos países da OCDE e de outros países da ALC. No Brasil, o número de médicos em exercício por 1.000 habitantes em 2019 era muito baixo em comparação com a média da OCDE, de 2,3 em comparação com 3,5 (Imagem 2.10). Esse número está entre os de densidade mais baixa, logo acima da Colômbia (com 2,2 médicos por 1.000 habitantes e a média da ALC (2,1 médicos por 1.000 habitantes). No entanto, o número de médicos aumentou 50% no Brasil na última década.

Ao mesmo tempo, embora a especialidade de medicina da família e comunidade tenha sido introduzida como uma especialidade clínica licenciada, o número de médicos de APS não aumentou de maneira conforme. No Brasil, a APS é realizada principalmente por médicos que não possuem nenhuma especialidade e/ou médicos com especialidade em clínica médica (ver Capítulo 5).

Em 2020, existiam cerca de 60 mil médicos trabalhando em APS, ao lado de 50 mil enfermeiras e 35 mil dentistas atualmente em exercício no Brasil. Em 2018, apenas 5.486 médicos tinham formação na especialidade Medicina da Família e Comunidade, representando apenas 1,4% do total de especialistas no Brasil (ver Tabela 2.3). Os médicos especializados em clínica médica que possuem algumas competências em medicina da família para prestar APS representam 11,2% de todos os especialistas no Brasil. Por fim, existem 169.479 médicos sem formação na especialidade, o que representa cerca de 37% do total de médicos.

Há disparidade marcante na concentração de médicos em diferentes regiões e estados, e entre capitais e outras partes dos estados. Ao todo, são 2,3 médicos por mil habitantes, mas há capitais com mais de 12 médicos por mil habitantes - como Vitória, no Espírito Santo - e regiões do interior do Nordeste ou na Amazônia com valores abaixo de um médico por mil habitantes. O Sudeste é a região com maior densidade de médicos por habitante (com 2,81 por mil habitantes), comparado com 1,16 por mil habitantes no Norte e 1,41 no Nordeste (Scheffer et al., 2018[35]).

Entre os estados, o Distrito Federal tem a maior densidade com 4,35 médicos por mil habitantes, seguido pelo Rio de Janeiro com 3,55 médicos por mil habitantes, São Paulo (2,81), Rio Grande do Sul (2,56), Espírito Santo (2,40) e Minas Gerais (2,30). Na outra ponta da escala, estão os estados do Norte e Nordeste. O Maranhão apresenta a menor densidade de médicos com 0,87 médicos por mil habitantes, seguido pelo Pará com 0,97 médicos por mil habitantes (Scheffer et al., 2018[35]).

Desigualdades geográficas na distribuição de médicos acontecem quando olhamos para médicos com treinamento em especialidades. Os indícios indicam agrupamento de especialistas em APS em algumas regiões: as regiões mais bem abastecidas são as regiões Sul e Sudeste, seguidas pelo Centro-Oeste (Scheffer et al., 2018[35]). O desequilíbrio na força de trabalho entre as regiões é analisado em mais detalhes no Capítulo 5 deste relatório.

Várias iniciativas em todo o país estão tentando resolver os desequilíbrios na distribuição dos profissionais de saúde. O Brasil introduziu diversos programas para melhorar o acesso à formação médica em comunidades carentes, incluindo o Programa de Interiorização do Trabalho em Saúde de 2001, o Programa de Valorização dos Profissionais de APS de 2011 e o Programa Mais Médicos de 2013.

Conforme descrito pelos Capítulos 4 e 5 deste relatório, o Programa Mais Médicos (PMM) é considerado a maior iniciativa governamental do mundo de recrutamento de médicos nacionais e estrangeiros para trabalhar em ambientes de APS em municípios que normalmente enfrentavam dificuldades de recrutamento e retenção. Até novembro de 2020, o programa era responsável pela presença de 16.426 médicos em 3.837 municípios brasileiros. Esse programa provou ter resultados positivos, por exemplo, em termos de investimento em unidades de APS, disponibilidade de médicos e desfechos de saúde (Hone et al., 2020[36]; Netto et al., 2018[37]).

Por outro lado, cargos de médico não ocupados ainda são comuns no Brasil, mesmo após a implementação do PMM. Em abril de 2019, estima-se que 3.847 cargos de médico no setor público em quase 3.000 municípios permaneciam não ocupados (Scheffer et al., 2018[35]). Os cargos de médico não ocupados no setor de APS certamente impedem a prevenção, o diagnóstico precoce, o acompanhamento de crianças, gravidezes, e a continuação do tratamento para quem tem problemas de saúde subjacentes.

No Brasil, os 5.570 municípios cuidam da gestão, organização e prestação de APS. O SUS oferece serviços preventivos e de APS gratuitos para sua população, a partir de equipes multiprofissionais de saúde da família. De modo geral, a organização da prestação de APS no Brasil está bem alinhada com as abordagens modernas da APS, que incluem vários profissionais com habilidades avançadas de trabalho em equipe. A priorização pelo SUS no que se refere à APS também permitiu contato mais fácil com os serviços de saúde nas comunidades. A implementação da Estratégia de Saúde da Família, um dos maiores programas de APS comunitária em todo o mundo, contribuiu para aumentar a cobertura da população e levou a melhorias mensuráveis em termos de taxas de mortalidade infantil, saúde materna e internações evitáveis. A expectativa de vida ao nascer no Brasil aumentou rapidamente nas últimas décadas - mais rápido do que nos países da OCDE.

Apesar dos grandes investimentos para melhorar o acesso à APS, a saúde continua sendo distribuída de forma desigual, de modo que as pessoas nas regiões Norte e Nordeste apresentam piores desfechos de saúde. Em parte, essas disparidades estão relacionadas à escassez de mão de obra e desequilíbrios na distribuição de médicos, bem como à menor infraestrutura e equipamentos de APS nas regiões Norte e Nordeste. Também há um aumento no número de pacientes idosos e uma prevalência crescente de doenças crônicas não transmissíveis, que exigem prevenção mais eficaz e APS mais forte para gerenciar melhor o fardo das condições crônicas. O Brasil precisará continuar a investir em um forte sistema de APS que responda às necessidades em constante mudança das pessoas, capaz de oferecer cuidados contínuos, proativos e preventivos. Os próximos quatro capítulos mostram em detalhes onde as mudanças são necessárias e como isso pode ser alcançado, principalmente para aumentar o rastreio e a prevenção das principais doenças crônicas não transmissíveis (Capítulo 3), melhorar a qualidade da prestação de APS (Capítulo 4), enfrentar desafios da força de trabalho de APS (Capítulo 5) e promover a digitalização da APS (Capítulo 6).

Referências

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Observação

← 1. As taxas de pobreza são medidas pela proporção do índice de pobreza em US$ 5,50 por dia (PPC 2011).

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